𝟑𝟓. 𝑪𝒆𝒓𝒕𝒆𝒛𝒂𝒔.

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                               Samir

 
  Devo ter levado uns 10 minutos na cozinha, comendo um sanduíche, que até o Miguel ficou de olho e pediu um pedaço. Fiz-lhe um, só para não bancar o chato. Ele rendeu elogios e, segundos depois, Sâmia apareceu, com uma cesta cheia de potinhos de doces lindamente enfeitados, e disfarcei um sorriso tomando um gole no suco cheio de gelo, para aliviar o calor que estava sentindo.

— Maninha, prova isso. — falou, dando-lhe um pedaço, que ela mordeu com delicadeza.
— Que delícia! Está ótimo! Espera, você está me usando de cobaia de novo, Miguel?
— Eu nunca fiz isso!
— Fez sim! Samir, sabia que mês passado, ele fez um pavê de chocolate horrível, e ainda por cima deu para eu provar? — me falou.
— Não estava horrível! — ele se defendeu, cruzando os braços.
— Falou que queria uma opinião, antes da Beatriz provar. Estava salgado! — ela contou, e eu comecei a rir — Eu tinha que ter desconfiado. — afirmou, encarando-no com os olhos estreitos e as mãos na cintura — Mas o seu sanduíche está uma delícia, irmãozinho. — garantiu, pegando o restante do prato dele.
— Não fiz, não, foi o Samir. — afirmou, e ela me olhou surpresa.
— Eu só coloquei um pouco do frango desfiado da geladeira, uai. — disse, dando de ombros, e Sâmia continuou me olhando, só que com um ar desconfiado — Vocês querem mais um? — ofereci, e eles dois prontamente aceitaram.

  Fui até o balcão nos fundos, perto da geladeira, e observei Sâmia entregar a cesta para Matilde, que informou que tudo estava pronto para mais tarde. Fiz o dela caprichado, com mais frango, e uma colher extra do molho de ervas que encontrei.
  Escutei a voz meiga dela, conversando com os irmãos menores que apareceram ali, prometendo levá-los para algum lugar, mais tarde. Terminei e levei para a mesa, e Miguel devorou tudo; quanto à minha protegida, mordeu e saboreou devagar, fechando os olhos por alguns segundos, com os lábios sujos de molho, aumentando a minha vontade de beijá-la de novo.
°

— Não, eu não tenho um cachorro. — falei, rindo, com a Sâmia, ao apear do cavalo, na praia, às 14h35min, e caminharmos puxando as rédeas, aproveitando os últimos raios de sol que atravessavam as nuvens brancas que migravam para o cinza.
— É que não sei quase nada a seu respeito.
— Tudo bem, uai. Eu me alistei na Marinha, já no finalzinho da guerra, em 1945. Fingi ter 19 anos, como você sabe. Fui a contragosto dos meus pais, porém voltei bem vivo. Até hoje, não faço ideia do que me deu na cabeça para fazer isso.
— E o que te fez ser guarda-costas?
— Na verdade, foi meio que acidental. Consegui proteger um oficial de uma explosão no navio aonde estávamos e levá-lo até o bote salva-vidas. Meses depois que voltei para casa, eu soube de um empresário que queria um guarda-costas que já tinha estado na guerra, então tentei a sorte. Fora que esse oficial me deu boas recordações, o que ajudou. E você? Sei que se dá bem com números.
— Sim, me dou. Meu pai sempre me ensinou sobre administração, porque me queria na empresa, um dia, como o Miguel. Fora que eu sempre gostei de matemática. Mas não entendo o porquê do meu pai não me arranjar um cargo. Está protelando desde os meus 17 anos. Até a minha ida para a faculdade foi adiada. E não, não tenho cachorro. — acrescentou, e rimos bobamente, o que eu fazia com constância ao seu lado.
— Só um cavalo chamado Pudim. — falei, e ela soltou uma risada esquisita, porém fofa — Pensa em ter filhos?
— Penso, sim. Gostaria de vários. E você?
— Também quero, um dia, mas não muitos. — disse, e ela sorriu.
— Eu não me importaria de já estar casada, mas me falta um candidato viável. Quero alguém que me entenda, do mesmo jeito que você. — afirmou, e me senti estranho, com o olhar que me lançou.
— Só tem 19 anos, vai conseguir achar alguém.
— Você também vai, até porque é jovem. 29 anos é pouca idade, não há porque se preocupar.
— Fala isso para os meus pais, que vivem me perguntando quando vou enrabichar.
— Que? — perguntou, confusa.
— Me envolver com alguém, é que eu cresci em Minas, e a gente fala assim lá.
— Ah, entendi. — garantiu, rindo baixo.
— Minha mãe comprou um smoking, um dia, e me deu, para usar no meu casamento, assim que fiz 6 meses com a Érica. Tive que usar naquela festa que o seu pai deu. Uai, ela já estava pensando nos netos, e escolhendo os nomes.
— E corria o risco de vir algum neto, antes da hora? — perguntou, com um sorriso malicioso, que fez o meu rosto esquentar.
— Não muito, até porque sempre tinha alguém perto. Da vez que aconteceu, ela tomou uns chás esquisitos, que uma amiga comprou com uma senhora e não aconteceu nada. Acho que a senhora se chamava... Maria Pia.
— É possível que seja a minha avó, já que tinha esse nome e vendia as ervas que cultivava. — ela explicou, o que me deixou surpreso.
— Talvez. Qual a sua cor favorita?
— Aposto que a sua é vermelho sangue. — rebateu, docemente, e eu apenas ri, constrangido, porque lembrei daqueles minutos na biblioteca — Porque ela?
— É a cor da vida, justamente aquilo no qual me tornei bom em tirar.
— Bem, a minha é a cor da areia do mar. — respondeu, e imediatamente olhei para aonde ela pisava, com os pés nus.
— Porque?
— Porque, dependendo da ocasião, a areia pode ser a vida ou a morte. Se estiver perdido no deserto, ela pode ser o seu fim, mas se estiver perdido em alto mar e ver a areia de uma praia próxima, pode ser a sua salvação.
— É um modo de pensar bem interessante.
— Fora que sempre vinha para cá, e ficava horas sentada, olhando o mar. Deve ser por isso que meu pai te contratou. Provavelmente, ficava preocupado, mesmo sabendo aonde estava.
— E você realmente ficava aqui, o tempo todo?
— Ficava, até porque se ficasse mentindo, ele iria me proibir de sair. Quando falei que sempre sabiam aonde eu estava, era verdade. Não preciso ficar mentindo para você.
— Ótimo, assim confio mais em você. — falei, e ela deu de ombros — A sua avó morreu de quê?
— Coração. Mas o meu pai nunca teve nada, aparentemente. Ela se foi, faz uns anos. A vovó me criou, depois que a mamãe morreu me dando à luz, e a Matilde a ajudou. Me ensinou tudo o que podia, e sou grata à ela por... ter me dado tanto. — disse, com a voz trêmula — Depois que o meu avô faleceu, ficamos mais próximas, passávamos muito tempo juntas, compartilhando e criando segredos. Sinto a falta dela o tempo todo. Não devia ter partido.

  Ela me encarou, com as lágrimas caindo, e instintivamente a abracei apertado. Sâmia respirou fundo e senti o seu corpo relaxando, com os seus braços mais apertados, ao redor de mim. Acariciei o seu cabelo, fazendo-a me olhar fundo e inclinei a cabeça, encostando a testa na dela.
   Vai ficar tudo bem, sussurrei, e ela apenas concordou, com outro sussurro. Não sei se foi a brisa fria que nos envolveu ou o barulho das ondas quebrando na areia, que me induziu a beijá-la com calma, e uma paz estranha me invadiu. Não queria soltá-la, nem que aquele momento acabasse, porém um trovão nos interrompeu.

— Temos que voltar, antes que a chuva nos pegue.
— É melhor, senão os cavalos vão acabar fugindo.

  Montamos e voltamos rápido, e a chuva desabou assim que entramos no estábulo. Coloquei a sela no lugar e me surpreendi com a Sâmia me puxando pela gravata, só para me beijar mais uma vez, correndo a mão esquerda pelo meu cabelo, fazendo o meu sangue esquentar.
   Me afastei e a puxei pela mão, seguindo pelo túnel que ligava aquele lugar até a casa. Saímos no porão e subimos sem que nos notassem, apesar do movimento ser grande ali. Lancei-lhe um último olhar, antes de nos separarmos, e retribuiu, com desejo, e desapareceu na curva do corredor. Ela era o meu segredo, e faria qualquer coisa para protegê-la, qualquer coisa, porque era o que eu fazia por aqueles que amava.
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Hasan    Where stories live. Discover now