𝟐𝟔. 𝑳𝒆𝒎𝒃𝒓𝒂𝒏𝒄̧𝒂𝒔.

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                                 Sâmia

Quinta-feira, 25 de Abril de 1957.

 
  Levantei da cama, irritada, porque não conseguia pregar o olho, e o meu relógio já marcava meia-noite. Maldição! Rodei pelo quarto, agoniada, com aquele maldito calor e resolvi abrir a porta do armário. Achei perdida no fundo uma caixa branca que eu não via fazia tempos.
  Quando a puxei e abri, encontrei o vestido cor de areia, com pregas e borboletas brancas bordadas, que não usava desde os 11 anos, e coloquei pela última vez na noite da morte de Melissa.
  Caminhei até o espelho, segurando o vestido contra o corpo, me lembrando como se fosse ontem, de todas as vezes que me enxotava, quando eu só queria a sua amizade. Fui passar o final de semana com o Miguel na sua casa e quis ver a estufa da avó, para saber se era igual a da minha.
  Obviamente, não era tão bem cuidada e as plantas não era claramente identificadas. Eu sabia o que fazia o que ali, afinal de contas, fui bem ensinada. De repente, Melissa entrou, em busca de algo para um chá, que sempre tomava antes de dormir, e ficou olhando interessada para uma plantinha discreta, num vasinho na altura do chão.
 
— Acho que isso é erva doce. — falou, e quando me aproximei, notei que era Cicuta.
— Não, Melissa! Fica longe disso! Minha avó me ensinou que essa planta é muito venenosa! Eu li num livro, também. Posso te mostrar, depois. — falei, segurando na sua mão.
— MEU DEUS, QUE MENINA CHATA! — berrou comigo, e estremeci, me afastando, sentindo as lágrimas brotarem — Eu sei muito bem a função de cada planta aqui, Sâmia! E a sua avó é uma velha que não sabe de nada! Vai morrer logo! Com certeza, se enganou! Vai fazer alguma coisa útil! Deixa eu ir lá ver quem está me chamando. — disse e saiu, me deixando em pé, paralisada.

  Fechei os olhos, triste. Porque ela não me entendia?, murmurei. Quando os abri, meu rosto já estava molhado e sequei a pele com as mãos. Só queria ajudá-la. Porque era tão má? Me aproximei mais da erva e percebi o quanto as flores pareciam inocentes, pequenas e inofensivas. Tem que entender que isso faz mal. Vi as luvas e a tesoura de jardinagem que a avó dela usava, em cima de uma prateleira, logo ao lado.
   Precisa aprender com as suas ações, repeti, do jeito que minha avó me ensinou. Às vezes, precisa explicar de forma mais clara, a voz dela disse, numa lembrança. Rasguei um pedaço da anágua branca do vestido e coloquei aberto no chão. Olhei em volta; estava totalmente sozinha, escondida no meio das plantas. Quem iria estranhar uma menina olhando as flores?
   Enfiei as luvas nas mãos e cortei uma muda pequena, colocando sobre o tecido. Pus a tesoura no mesmo lugar, enrolei a planta com muito cuidado e saí de lá, entrando escondida na cozinha vazia e peguei um infusor de chá, fugindo para o meu quarto. Soltei parte das folhas e coloquei dentro, deixando tudo escondido por trás do armário.
   Tirei as luvas com cautela e deixei lá também, saindo para o almoço. De noite, vi Melissa levando uma xícara com o infusor para o quarto, mas voltou na cozinha para pegar alguma coisa, deixando a porta aberta. Coloquei as luvas de volta e peguei tudo, correndo até o quarto e colocando o infusor no lugar do outro, e deixando a muda por baixo do pires colorido, me escondendo no banheiro escuro, em seguida.
  Logo, ouvi os seus passos, e o tilintar da porcelana. Minutos depois, começou a tossir e saí do cômodo para vê-la caída sobre cama, agarrando o próprio pescoço, chiando ao puxar o ar, com toda a força que tinha. Os olhos castanhos claros estavam arregalados, olhando para mim. Estendeu a mão na minha direção, como se pedisse ajuda, porém relaxou o corpo, com a respiração entrecortada e os lábios roxos.
   O tique taque do relógio marcava cada instante em que o peito dela subia e descia com dificuldade, se contorcendo, perdendo o fôlego, até ficar imóvel. Meu coração batia muito forte, mas creio que o dela tinha finalmente parado, a julgar pelas pupilas que vi dilatar ao máximo. Fechei os olhos por alguns segundos, ouvindo a minha respiração pesada ecoando no cômodo, e voltei a observá-la. Nunca mais vai me tratar mal, murmurei, deixando-a ali, fugindo, após trancar a porta do quarto, indo direto para o meu.
  Fazia muito frio, naquele horário, por causa da frente fria, e me aproximei da lareira acesa, jogando as luvas ali. Usei o atiçador para empurrá-las para o meio das chamas, e rapidamente carbonizaram, não restando nada. Lavei a chave na pia do banheiro, para tirar os resíduos da Cicuta, que poderiam me fazer mal, e também higienizei as minhas pequenas mãos trêmulas.
  Deu certo, deu certo, sussurrei para o meu reflexo no espelho e os meus olhos estavam arregalados. Saí dali e joguei a chave do quarto de Melissa por baixo da porta dela. Me deitei sem acreditar no que tinha feito. Mas foi tão fácil, assim como com o vovô!, murmurei, no escuro,  dormindo bem até demais.
   De manhã, fui até a cozinha, aonde a mãe perguntou pela filha, ao tomar tranquila o café. Não sei, mas posso ir acordá-la?, perguntei, ansiosa, e ela prontamente segurou na minha mão, seguindo até o quarto. Tentou entrar e não conseguiu, fora que a filha não respondia. Correu até algum lugar e pegou a chave mestra, e quando finalmente abriu a porta, viu a adorada estirada sobre o colchão sem respirar e a pele gelada.
  Não esqueço o grito ensurdecedor que ela deu e pulou em cima da cama, chacoalhando a garota morta, depois saiu correndo, pedindo ajuda. Me aproximei do corpo, observando cada detalhe, desde o rosto inchado até as pupilas abertas. A xícara estava perfeita sobre a mesa de cabeceira. Segurei na sua mão delicada e estava muito fria. Fria como o gelo, pensei. Eu avisei que era venenoso, sussurrei, depois de me inclinar na altura dos seus olhos sem vida e encará-la fundo.
  Miguel ficou desolado. Não parou um instante de chorar, no funeral. Porque estava chorando por ela?, perguntei, brava, e todos me olharam confusos. Ela não te merecia, gritei, em vão. Alguém me levou para um canto, tentando me acalmar, enquanto eu ainda questionava. Como ele podia chorar por um pessoa tão desagradável?, reclamei, aos prantos, sem ter uma resposta satisfatória.
  Um tempo depois, mais calma, meu irmão me procurou e o abracei, bem apertado, e ele retribuiu, instintivamente. Acariciei o seu cabelo escuro e ouvi-o soluçar. Vou te ajudar a achar uma namorada, maninho, sussurrei e ele apenas agradeceu, dizendo que era gentil da minha parte, e beijou a minha bochecha.
  Todos acharam que eu estava traumatizada pela minha reação e nem falado a respeito do que vi naquele quarto, então evitaram perguntas. Meu pai e minha avó sempre me perguntavam se eu estava bem e que se quisesse conversar, estavam disponíveis.
  Não havia o que dizer; o que tinha de ser feito foi feito. A avó dela passou anos se culpando, e com razão. Isso com certeza fez-a entender que devia ter ensinado melhor a neta insuportável a prestar atenção no que fazia.
  O barulho da chuva caindo me arrancou das lembranças e me encarei no espelho, estando com o mesmo olhar que lancei para Melissa, depois que ela parou de respirar. Mas foi bom o que aconteceu; agora o meu irmão iria se casar com uma jovem maravilhosa, e ninguém mais combinaria tão bem com ele quanto a Beatriz. Amava o Miguel, e faria tudo para vê-lo feliz. Não podia evitar, eu fazia qualquer coisa por aqueles que amava.
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Hasan    Where stories live. Discover now