𝟖𝟑. 𝑷𝒐́𝒔 𝒇𝒆𝒔𝒕𝒂, 𝒑𝒂𝒓𝒕𝒆 𝟑.

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                                   Sâmia

Quarta-feira, 12 de junho de 1957

  Virei a página do jornal, depois da dose de antibióticos das 09h15min, usando a mão direita, já que mexer a outra não era permitido pelo médico, até porque causava uma dor terrível no ombro esquerdo, por isso o imobilizaram.
   O artigo falava sobre as investigações a respeito do incêndio na minha casa e a morte do Daniel. A fala do meu pai à imprensa ajudou a desviar o foco para um provável ataque de loucura de um homem muito rico, que se embebedou e atirou na jovem e adorável esposa.
  O artigo também apresentou uma cópia da carta que um empresário chamado Benedito Gonçalves enviou contando de um episódio aonde Daniel teve um surto, destruindo vários objetos num quarto, durante uma festa na casa dele, bebendo mais do que o recomendado.
  Isso só reforçou a imagem ruim que todos tinham do meu falecido marido, que seria enterrado naquela tarde.
  Não lembro muito do que aconteceu naquela noite. Tudo está muito confuso ainda. Só me vem imagens turvas, com o som de um disparo e o Samir chamando, porém sempre ouvia a sua voz muito distante.
  A enfermeira disse que eu sussurrava coisas estranhas, ao acordar, porém só me recordo de falar para o meu amado guarda-costas que seria até o último suspiro.
  O médico terminava de trocar os meus curativos quando ele entrou no meu quarto, devagar, olhando-me com dor, e se aproximou, envolvendo o meu rosto com cuidado.
  Algumas lágrimas fugiram, assim que nos abraçamos devagar e deixei o seu calor me envolver. Chorei contra o seu ombro, ainda abalada com a morte dos meus irmãos e com a possibilidade de nunca mais ver o meu querido.

— Eu tive tanto medo de te perder, meu amor! — falou, em árabe, ao encostar a testa na minha — Como você está?
— Estou bem, não se preocupe. Ninguém vai te tirar de você, Samir, ninguém. — garanti, no mesmo idioma, pois notei que a enfermeira nos observava — Deu tudo certo, não deu? — perguntei, ao secar o seu rosto com a mão livre.
— Foi tudo bem. — respondeu, acariciando a minha bochecha, sentando ao meu lado — O seu pai mandou o advogado dele cuidar de tudo. E pedi para um amigo que me devia um favor falar com um juiz conhecido dele providenciar a minha soltura. Mas ainda estão investigando. O advogado falou comigo hoje de manhã que aqueles detetives que cuidaram da morte da Érica estão trabalhando no caso.
— Ele me avisou ontem que faria de tudo para te inocentar. É o mínimo depois do descuido dele. Ainda não acredito que a Layla... De onde veio aquela arma?
— Não sei, mas vão enterrá-la aqui mesmo, no Rio. A Zaina foi ao enterro e contou que não tinha ninguém, além dos pais e a tia Jamile.
— Bem, ela não ficou com uma imagem muito boa. Queria ter acordado para me despedir dos meus irmãos. — falei, com uma lágrima que Samir correu para secar com a ponta dos dedos Os detetives virão daqui a pouco conversar comigo. O doutor Abelardo deve ter chegado já.
— Eu espero lá fora. Eu só falaria a com eles amanhã, mas talvez seja melhor hoje, até porque estou consumido pela tristeza, assim com você, a meiga e traumatizada jovem esposa. — acrescentou, irônico, sorrindo comigo.

  Segundos depois, o advogado apareceu e estranhou a presença do Samir, que tratou de dizer que queria logo falar com os detetives, o que o outro desaconselhou.
  Em seguida, os homens chegaram e tiveram a mesma reação de espanto, porém Samir se retirou rápido. Coloquei uma expressão triste no rosto e meu pai também surgiu, sentando na cama, segurando a minha mão, ainda abatido.

— Doutor Abelardo, bom dia. — falou, ao apertar a mão do homem — Senhora Sâmia, por acaso se lembra de nós? — o primeiro perguntou.
— Lembro sim, claro! Você é o Tércio Nogueira e o outro é o detetive Samuel Torquato. Cuidaram do caso da Érica. Graças a vocês, ela teve justiça.
— Só fizemos o nosso trabalho. Gostaria de dar os nossos pêsames pela perda de vocês.
— Eu ainda não acredito que o Daniel... Os meus irmãos... Não devia ter insistido para fazer a festa na mansão, não devia! — falei, forçando nervosismo.
— Filha, não é sua culpa! Ninguém podia imaginar que o Daniel faria aquilo com você!
— Ele sempre ficava tão nervoso e eu nunca sabia o motivo! Teve um dia em que ele me bateu e... Sei que ele não queria, mas...  O Daniel tinha muito ciúme do Miguel. Sempre reclamava que estávamos juntos e... O meu irmão sempre cuidou de mim em tudo, porque não estaria ao lado dele?
— Pode nos contar o que houve naquela noite?
— Sim, detetive. Me lembro de pouca coisa, mas consigo. O Daniel estava empolgado com os preparativos do meu aniversário. Ele mesmo ofereceu o evento. A festa estava tão bonita, e nesses dias ele estava tão carinhoso! Mas tinha horas em que bebia e começava a falar sozinho, como se brigasse consigo mesmo. Meu marido dizia que me amava desde a primeira vez que me viu, só que eu não entendia o porque era tão agressivo! Eu pedi o divórcio e ele simplesmente concordou, o que achei estranho. Alegou que nos precipitamos em nos casar e que era melhor cada um seguir o seu caminho.
— Do que mais se lembra?
— Filha, se estiver cansada, continuamos amanhã. Sabe que o médico quer que você descanse.
— Tudo bem, pai, eu posso falar.

  Para a minha salvação, um dos empregados apareceu e o chamou para fora, o que nos deu mais privacidade.

— Tem algo que preciso contar. — comecei, e notei que os meus ouvintes se ajeitaram nas cadeiras, interessados —Me casei para honrar uma dívida que meu pai tinha com o Daniel. Se eu recusasse, seríamos despejados. — contei, e vi o espanto em suas faces — Ele alegou que só impôs isso porque não conseguia mais viver longe de mim. Nunca quis que meus irmãos menores perdessem o lar deles, por isso aceitei. Só sei que ele foi um perfeito cavalheiro até o dia do casamento, e depois mostrou quem realmente era. Precisei disputar a sua atenção com a garrafa de conhaque muitas vezes, e ela sempre vencia, fazendo-o apagar em qualquer canto da casa. Só recordo de ir até o quarto, e o Daniel estava lá, bebendo e dizendo coisas que não... — expliquei, fingindo confusão — Então atirou em mim e eu não conseguia respirar direito. Tudo começou a girar e... Nunca senti tanta dor na vida! Mas vi o Samir entrar e ainda apanhou dele! Depois o senti me pegar no colo e um cheiro de fumaça muito forte.
— No caso, o seu marido pode ter começado o incêndio?
— Não precisa responder, se não quiser, Sâmia. — o advogado tentou intervir.
— Ah, não se preocupe, doutor. Acho que sim, eu senti um cheiro de queimado assim que entrei no corredor.
— O seu guarda-costas é treinado em artes marciais, além de ter posse de arma, porém saiu bem machucado. Porque acha que ele não revidou o ataque?
— O Samir nunca machucaria ninguém! Ele viu, dias antes, que eu tinha sido agredida, mas jurei que não era nada e implorei para ele não contar nada! A Madi também viu e me fez jurar que pediria a ajuda dele, se precisasse. Se eu tivesse escutado, talvez...
— Por favor, não se culpe, senhora. Coisas como essas são imprevisíveis.
— Lembro de muitas vozes, disparos e gritos, aí acordei no hospital.
— A investigação apontou Layla Fadel como responsável pelos disparos que atingiram o seu irmão, Miguel, e a pequena Theodora. Inclusive, ela era ex namorada do Samir. Ela foi convidada para a festa?
— Não, e não sei como ela entrou. Eles terminaram porque tinham planos diferentes. Samir não queria ir embora do Brasil e ela queria. Mas tinha voltado para a casa dos pais, não entendo porque retornou.
— Não conseguimos contatar os pais dela. Depois do funeral, eles foram embora do Rio.
— Eu mal a conhecia. Perdi meu marido, minha casa e meus irmãos. — falei, sentindo uma lágrima cair — Não sei o que fazer, agora.
— Tem certeza de que não se lembra de mais nada? — insistiu, e apenas neguei com a cabeça, abaixando o olhar — Acha mesmo que o Samir não revidou e matou o seu marido por acidente?
— Jamais! Ele nunca faria uma atrocidade dessas! Se não fosse pela sua prontidão, eu estaria morta. O Daniel causou tudo aquilo e agora... Eu não queria que acabássemos assim.
— Quero perguntar só mais uma coisa: aquela moça que foi morta na sua propriedade, a Érica de Oliveira, também era ex namorada do Samir, assim como a Layla Fadel. A única ligação entre as duas é ele, que foi o último a ver o seu marido vivo. Não acha que pode significar algo?
— Não, não acho, até porque todos sabem que a minha tia louca feriu a moça, e a Layla atirou na própria cabeça na frente de todo mundo! Não sei o que houve com o Daniel, mas o Samir não teve culpa! Ele me salvou! Eu estaria morta se... Pensei que nunca mais o veria. — prossegui, sentindo o choro vir.
— Está falando de quem, exatamente?
— Do meu pai. — menti.
— Senhores, acho melhor deixarem a Sâmia descansar. — Matilde avisou, depois de aparecer de súbito no cômodo — Está se sentindo bem, querida?
— Estou sim. — garanti, com um sorriso, e ela acariciou o meu cabelo, em resposta.
— Bem, é melhor irmos. Desejamos melhoras, senhora. — começou, levantando com o parceiro — Mas... Por acaso, perdeu a sua joia?
— Sim, não a encontro em lugar nenhum! — reclamei, correndo a mão pelo pescoço, chateada — Acho que perdi o meu colar na festa. Devem ter roubado,  a essa altura. Ele era importante.
— Eu me referia a sua aliança de casamento. — prosseguiu, apontando para a minha mão esquerda, e segui o seu olhar — Era uma esmeralda bem grande e valiosa. Anéis assim tem um certo peso, como não deu falta dele?
— Como eu disse antes, detetive, não me lembro de muita coisa daquela festa.
— Bem, isso é estranho. Deu falta de um colar tão simples e sem atrativo, mas não da esmeralda que poderia afundar o Titanic?
— Já disse que não me lembro, senhor.— finalizei, tentando controlar a raiva no meu íntimo.

  O homem encarou-me por alguns segundos, e sustentei o olhar, bem tranquila. Estava me lixando para aquele anel. Em breve, o meu amado guarda-costas colocaria outro no lugar e não faria diferença.
  Eles foram com a governanta e a enfermeira ajeitou o travesseiro nas minhas costas, e senti uma desconfiança no seu olhar. Aquele conforto não afastou a minha preocupação sobre o que perguntariam para Samir. Só me restava esperar, e eu odiava isso.
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Hasan    Where stories live. Discover now