𝟖. 𝑨𝒍𝒈𝒐 𝒆𝒔𝒕𝒓𝒂𝒏𝒉𝒐.

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                                Samir

— E a festa de hoje é justamente para isso: fechar novos acordos, e é claro, anunciar o meu noivado. — Miguel falou, animado, um tempo depois de se sentar junto com Leonora, para o café; conversar com ele era muito agradável.

  Pensei rapidamente no que houve mais cedo, quando cheguei e fui informado por ele sobre aonde a irmã estava. Ele me indicou o caminho até a biblioteca, e encontrei-na mexendo na estante, muito distraída. Precisava ter certeza de que ela era como as outras e se sua simpatia era falsa. Estalei o dedo e saí de frente da porta, mas Sâmia não saiu do lugar, já que não ouvi os seus passos.
  Estalei de novo, e dessa vez, seus passos ecoaram sobre o piso de madeira e apenas fiquei parado do lado esquerdo da porta. Ela finalmente saiu, mas olhou para o outro lado, desconfiada. A cumprimentei, e deu um pulo, assustada. Pensei que me repreenderia, mas apenas sorriu e se desculpou por se esquecer que eu vinha, o que achei bem estranho, já que as filhinhas irritantes nunca se desculpavam.
 
— Vai se casar? Meus parabéns. — continuei, contente, voltando-lhe o foco.
— Logo mais, vai poder conhecê-la. Ah, ela é incrível! Me entende como ninguém. — garantiu, com um olhar cheio de ternura, e me senti desconfortável, mas disfarcei — Com certeza, vai passar o dia se arrumando. Mas e você, Samir? Não quer trazer a sua namorada para festa hoje?

  Isso não seria possível, já que eu não tinha uma, pensei. Era difícil achar alguém que entendesse o que eu fazia. Correria o risco de ter que fingir sempre, o que me cansaria e impediria de ter uma relação profunda, assim como os meus pais tinham.

— Não, no momento, eu não tenho uma. — disse, tentando não transparecer o quanto estava chateado.
— Talvez ache uma, na festa. — falou, com uma piscadinha, que me fez rir.
— Pois é e, quem sabe, os meus pais parem de me perturbar. — falei, forçando uma risada.
— Vai dar tudo certo! Ah, Daniel! Sente conosco!

  Olhei na mesma direção que Miguel, e o dito cujo entrou, bem arrumado, aparentando ter uns 30 e poucos anos, com um terno bem caro. Até que esse Daniel Magalhães, de perto, era ajeitado, pensei. Era o dono de uma próspera empesa de mineração, que sobreviveu à crise de 1929. Já o vi, em outra ocasião, de longe, numa festa que um antigo chefe meu deu. Ele parou ao meu lado, com as mãos nos bolsos, e uma expressão tranquila, olhando para cada um de nós.

— Bom dia, a todos. — cumprimentou, num tom firme, provavelmente era o modo como falava com os seus funcionários — Ah, obrigado, Miguel, mas eu só vim falar com o seu pai sobre o novo contrato que fechamos, na sexta passada. — disse, ao olhar o relógio Piaget, no pulso esquerdo, que custava muito caro, e o outro balançou a cabeça, concordando — Mas vou pegar só um pãozinho desses aqui. — esticou o braço, até alcançar a bandeja no centro da mesa — Esses são seus, Sâmia? — perguntou, mordendo um pedaço.
— Sim, eu sempre faço. — respondeu, em tom amigável.
— Bem, é uma delícia. Você tem mãos de fada. — concluiu, adoçando a voz, o que me enjoou.
— Obrigada. — agradeceu, desviando o olhar, bebericando o café, e o homem continuou com um sorrisinho.
— Eu sei que já falei isso antes, mas a união entre você e sua irmã é surpreendente, Miguel. — afirmou, e o outro apenas sorriu, em resposta — Bem, te vejo depois, no escritório. Vou lá falar com o Alfredo. Adeus, pessoal. — se despediu, lançando um último olhar breve para Sâmia, que não estava olhando para ele.

  O irmão mais velho, caiu na gargalhada, depois que Daniel se foi, e a irmã revirou os olhos.

— Você o convidou? — ela indagou.
— Não, fadinha, mas acho que ele está arrastando uma asa por você. — falou, com um ar malicioso.
— Ele é bem mais velho que eu! Tem 36 anos!
— Mas é podre de rico e estava em busca de uma esposa. Fora que não tem herdeiros.
— E eu com isso? Virei uma égua reprodutora? Por favor, não o incentive!
— Ele sempre faz isso? — perguntei, não achando a menor graça daquele flerte ridículo.
— O Daniel fez, em outra ocasião. É um dos sócios do tio Alfredo, faz um tempo. — Leonora explicou — Bonito e podre de rico. — falou, empolgada, e continuei não simpatizando com o bagaça — Volte e meia, vem aqui. Eu queria muito que um homem rico me pedisse em casamento, mas tem gente que não dá valor ao que tem. — alfinetou, olhando de soslaio a prima.
— Já tenho os meus interesses, fora que ninguém me pediu nada. E ele é velho demais.
— E mastiga como um esquilo. — acrescentei, incomodado — Desculpa, gente, mas é a verdade.

   Os outros dois apenas se olharam de forma debochada, e Sâmia caiu numa gargalhada alta, larga e alegre, expondo as covinhas nas bochechas levemente rosadas. Acho que gastei alguns segundos observando-a e acabei rindo junto.

— Você tem alguma coisa com ele, Sâmia? — não resisti e perguntei, incisivo, com ela me encarando, franzindo a testa.
— Eca, Deus me livre!
— Na verdade, o titio não dá uma festa assim faz um tempo, não é Miguel? — Leonora perguntou, interrompendo o meu raciocínio, após dar um gole do leite na xícara com flores bordadas — A última foi quando a Sâmia tinha 11 anos.
— Sim, no ano em que a Melissa morreu.
— Quem era ela? — perguntei, e notei que Sâmia, sentada ao lado esquerdo do irmão, me encarou rapidamente.
— Foi uma antiga namorada, que eu tive aos 17 anos. Morreu, durante a noite, sem chance de socorro. — Miguel explicou, com uma nota de tristeza.
— Foi muito triste mesmo! Pobrezinha! — Leonora contou.

  Notei que Sâmia contraiu os cantos dos lábios, e se levantou, de súbito, aparentemente tensa, levando a louça que usou até pia, nos assustando.

— Foi encontrada pela mãe, de manhã. A Sâmia estava junto. — a prima continuou, sussurrando, se inclinando na minha direção — Imagino o quanto deve ter sido horrível ver a outra morta. Ela nunca mais falou a respeito. No funeral, começou a questionar o Miguel, nervosa, sobre o porque dele está chorando por ela, alegando que a outra não merecia. A Melissa era um pouco difícil, às vezes.
— Ela morreu de que?
— Envenenamento. — falou, e me senti congelado, por um segundo.
— Com o que?
— Uma planta chamada Cicuta. Parece que a doida da avó encomendou de fora do país e cultivou numa pequena estufa que tinha na propriedade. Fora que a Melissa tinha mania de achar qualquer flor no caminho e pegar para cheirar. Às vezes, até comia as pétalas, porque sempre achava que eram as flores comestíveis que viu em algum livro. Quase tomou chá de Abundância, achando que era hortelã.
— Como sabiam qual flor era? — perguntei.
— Tinha um ramo no quarto, na cabeceira. Não imagino a dor dessa mãe em perder a filha. Sinto muito por você, primo. — falou, segurando a mão de Miguel, que retribuiu com um breve olhar triste.

  Olhei na direção de Sâmia, em pé, de costas para nós, conversando animadamente com Matilde. Mais uma vez, seu nome está próximo da palavra envenenamento. Será mesmo que teve algo a ver com isso?, pensei, mas me repreendi, pois ela teria apenas 11 anos, na época. É muito cedo, refleti, mas eu também fiz coisas cedo demais. Não demorou nada e Matilde se aproximou.

— Samir, as mulheres da casa vão passar o dia no salão de beleza e não teremos muito o que fazer aqui. Quer fazer um passeio pela propriedade? — perguntou, com a voz doce.
— Tudo bem, vamos sim.
— Claro, então podemos ir, assim que estiver pronto. — me respondeu, assentindo com a cabeça, e Sâmia passou por nós, com uma expressão debochada, e eu sabia que era por causa do flerte da governanta.
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Hasan    Where stories live. Discover now