𝟏𝟏. 𝑶 𝒈𝒖𝒂𝒓𝒅𝒂-𝒄𝒐𝒔𝒕𝒂𝒔.

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                                 Sâmia

  Terminei de passar mais uma camada de   máscara nos cílios e me olhei mais uma vez no espelho. O delineado nos olhos estava perfeito! Me sentia diferente e mais adulta com o vestido vermelho.
  Naquela noite, eu não precisaria sustentar a imagem ingênua e frágil que mantive por tanto tempo. Facilitava a minha vida, em alguns casos, menos quando o meu pai me arranjou um guarda-costas, justamente porque pareço ingênua e frágil.
  Suspirei, satisfeita, e conferi o laço nas costas, que consegui fazer com perfeição, não sei por qual milagre. Saí do quarto, descendo pelo corredor secundário — usado pelos empregados, algumas vezes — e cheguei rápido no caminho que saia na lateral da escadaria principal.
  Ainda estava vazio lá, então parei e peguei uns biscoitos que estavam na bomboniere de vidro com lindos entalhes. Droga, errei a receita de novo!, pensei comigo, e acariciei o pescoço, que estava dolorido. Ao me virar para seguir caminho, vi Samir me encarando, surpreso.
  Deve me achar uma esfomeada, refleti, e caminhei até ele, belíssimo com o smoking. Incrível como uma roupa nos mudava tanto! Estava muito elegante, parecia até mais alto. Acho que o negro da roupa ressaltou a cor dos olhos, e as suas origens lhe davam um ar exótico, muito atraente. Que pão!, pensei.
  Não pense nisso, Sâmia, repreendi-me em silêncio, já que o Eduardo viria hoje e queria que tudo fluísse bem entre nós. Mandei fazer esse vestido com um decote profundo nas costas e a saia mais leve, para acelerar as coisas. Ofereci um biscoito para Samir, que acabou não pegando, apenas ficou me encarando, de cima a baixo, o que deixou um pouco desconcertada.
  Caminhei com ele me seguindo até o saguão, e do nada, disse que o laço do vestido estava se desfazendo, o que achei estranho, mas o deixei refazê-lo. Tive a ligeira impressão de ter sentido os seus dedos tocando a minha pele. Ah, mas ele não seria louco de tentar me alisar, pensei.
  Também disse que eu estava perfeita, e fiquei sem graça. Quis dizer que ele também estava lindo, só que poderia passar a impressão errada. Um bom tempo depois, todo mundo já estava aqui, e finalmente o Eduardo tinha chegado, vestido com um smoking de altíssima qualidade, um verdadeiro tipão.
Não demorou muito e já estávamos numa conversa animada. Ele falou que amou o meu vestido, o que me deixou feliz da vida. Vai ser sopa no mel, comemorei mentalmente, e sorri para o meu acompanhante, olhando fundo em seus olhos escuros.
 

— É sério, você está um pitel, Sâmia. — falou, se aproximando mais — Porque a gente não vai dar uma volta no jardim? — sugeriu, brincando com uma mecha do meu cabelo.
— Eu tenho um guarda-costas agora.
— E qual o problema?
— Se eu sumir, ele vai me dedurar e papai vai ficar tiririca.
— Vamos rapidinho, ele nem vai notar. — insistiu, com a voz macia, segurando na minha mão, e eu ri.
— Ele está olhando para cá.
— Quem, o seu Alfredo?
— Não, o meu guarda-costas. — indiquei a direção da porta, e Eduardo olhou para onde Samir estava nos encarando, sério, o que achei esquisito.
— Nossa, ele é tão sisudo! — falou, rindo — Será que a gente não consegue fugir por uns segundinhos? — perguntou, fazendo charme.
— O que queria fazer? — indaguei,  olhando-o com malícia, e encarou os meus lábios, se aproximando para me beijar — Aqui não, Edu. — alertei, com brandura, desviando o rosto, ao som da risada dele, e notei olhares reprovadores.
— Não quer que o seu carcereiro te veja me beijando? A gente já fez isso antes. Foi bem rápido, mas fizemos.
— Eu sei, só que não podemos fazer isso aqui, com tanta gente em volta. Mas calma, ele não vai ficar aqui, nos finais de semana. Vamos ter mais privacidade. — expliquei, olhando a sua boca, louca pra beijá-la.
— Tudo bem, eu espero. Na verdade, eu soube que prenderam aquele sujeito que esfaqueou o vizinho, em Icaraí. Finalmente, vai aprender com os seus crimes. — falou, e eu amava as nossas conversas, sempre muito estimulantes.
— Eu também ouvi falar, mas nem sempre a prisão é punição suficiente.
— Como assim, Sâmia?
— Porque ele pode muito bem voltar a matar, assim que for libertado. Por isso, a prisão nem sempre é suficiente. Precisa fazer entender a gravidade dos seus atos, punir de forma eficaz, talvez por dar a ele o mesmo tratamento que deu para a vítima, morta a facadas. Se precisar matá-lo depois, fica a critério de quem interessar. Por exemplo, e se fosse um assaltante que baleou alguém, talvez cortar os dedos para nunca mais roubar. — expliquei, olhando-o fundo — O que quero dizer é que nem sempre prender resolve.
— Ficou biruta? Matar a pessoa? — me perguntou, com uma expressão de repulsa, que me assustou, e desfiz o sorriso.
— Talvez seja necessário fazer isso. Pode até beneficiar outra pessoa, ou abrir caminho pra se ter algo melhor.
— Não é, a prisão está aí para isso!
— Nem sempre podemos contar com a prisão. Não é que não seja eficaz, mas talvez não dê tempo de esperar por ela!
— De onde tirou isso, Sâmia?
— Edu, eu preciso te perguntar uma coisa: você seria capaz de aceitar alguém que já fez isso?
— Isso o que, meu bem?
— Usar a morte como uma ferramenta? Se livrar de alguém que talvez seja um obstáculo para ter o que se quer? — perguntei, tensa — Se livrar de verdade.
— Claro que não! Isso é absurdo! Nunca perdoaria alguém que tira uma vida por uma razão tão fria! Olha, eu nunca ouvi um pensamento tão violento e abominável em toda a minha vida, principalmente vindo de uma pessoa tão jovem e bonita, como você. É doidinha, só pode. — falou, com uma risada baixa, e senti o choro vindo.
— Você não entende, não é? — indaguei, triste.
— Não tem como entender uma coisa dessas! Olha, brotinho, é melhor não beber mais isso. Não está te fazendo bem. — pegou com cuidado a taça de champanhe, ainda cheia, da minha mão e se afastou.
 

  Respirei fundo, me sentindo tão constrangida, que queria desaparecer. Olhei para a porta próxima de mim e passei por ela, deixando todos para trás. Não pode ser, não pode ser, murmurei, sentindo um nó enorme na garganta e o coração disparado. Ele não me entende, não me entende, sussurrei, esfregando os olhos.
 Caminhei rápido, até a terceira porta, e entrei na biblioteca, vendo tudo embaçado por causa das lágrimas e  acendi o bajur da mesa, me refugiando num sofá encostado na janela, com os braços ao redor do corpo e o restante do choro saindo sozinho. Gostava tanto dele! Sempre me tratou tão bem, porque agiu assim? Não gostava de mim? Ele me acha uma aberração, assim como os outros, disse para mim, agarrada a uma almofada.
  Nunca gostou de mim, nunca! Me sentia tão revirada que estava enjoada. Porque nunca me entendem? Arranquei os sapatos vermelhos e me encolhi sobre o assento, enfiando os dedos no cabelo.
  Tentei ser sincera, mas deu tudo errado! Meu pai e a Madi sempre me ensinaram que a sinceridade é um dos pilares de um bom relacionamento. Eu não vou conseguir um, não vou, não mereço, murmurei, e escondi o rosto entre as mãos, soluçando.

 
— Sâmia, o que houve? — a voz grave de Samir me despertou e o encarei.
— Ah, não! Me desculpa, eu precisava...
— Ele te machucou? — perguntou, após sentar de frente para mim.
— Não... — falei, secando o rosto com as mãos — Não encostou em mim.
— O que aconteceu, então? Vi que ele falou alguma coisa que te deixou estranha.
— Eu não quero te perturbar com isso, está tudo bem. — disse, mudando de posição, tentando alcançar os meus sapatos com os pés — Só tenho que ir no quarto arrumar a maquiagem.
— Sâmia, não precisa fingir para mim. — garantiu, e eu o olhei fundo, ainda chateada — O que foi que ele te disse?
— O Eduardo mencionou aquele caso do homem que esfaqueou o vizinho, e que ficou contente com a prisão dele.
— Li no jornal sobre isso, mas qual o problema?
— Enfim, eu falei que a prisão nem sempre era suficiente, que a pessoa poderia sair e voltar a cometer o crime. Tinha que fazê-la entender a gravidade dos seus atos, punindo de forma eficaz. Mas ele disse que esse pensamento era... violento e abominável, e que eu era doida. — contei, com a voz embargada, e notei que ficou irritado — Até sugeriu que eu estivesse bêbada! Só porque sou jovem, não posso pensar assim? Ele não me entendeu! Pensei que era diferente. — apertei os olhos, magoada — Ninguém entende! NINGUÉM!
— Sâmia, calma!
— Tem gente que simplesmente deve ser removida do nosso caminho, não importa como! Eu fiz tanto por ele para acabar assim! Fui rejeitada do mesmo jeito! Tanto esforço em vão! — reclamei, e o olhar dele ficou estranho.
— Sâmia, calma, você está nervosa, mas não se preocupe, porque vai ficar bem! Não precisa desse pulha!
— Pode até ser, mas sei que talvez tenha que matar a pessoa, com toda a dor possível! Porque é isso o que tem que acontecer com aqueles que tentam nos machucar! Você está me entendendo, Samir? — perguntei, nervosa, e ele fez que sim, com a cabeça — Mesmo que seja com uma única dose que mate em 7 minutos! Nem é tão difícil e nem vai fazer diferença! POR MIM, O EDUARDO NEM PRECISARIA MAIS ANDAR NESSA TERRA! — falei, com todo o ódio que era capaz de sentir.

  Notei que Samir se ajeitou no assento, ainda me ouvindo, olhando fixo, com uma cara estranha. Qual o problema dele?

 
— E se ele não andar mais for uma opção? — se inclinou para mim, pegando na minha mão, e não recuei, notando que a dele estava bem quente.
— Do que está falando? — perguntei, me sentindo esquisita.
— 7 minutos é um tempo muito específico. — disse, em tom desconfiado — Como você sabe que leva 7 minutos?
— Ah e-e-eu... — gaguejei, gelada, porque tinha falado demais e soltei a sua mão — Só falei por falar.
— Não falou, não. E não se preocupe, você está certa. Algumas pessoas precisam ser removidas. — falou, com naturalidade.
— O que? — perguntei, incrédula.

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Hasan    Where stories live. Discover now