𝟏𝟒. 𝑪𝒂𝒇𝒆́ 𝒅𝒂 𝒎𝒂𝒏𝒉𝒂̃.

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                                 Samir

Sexta-feira, 19 de abril de 1957

 
  O que você está escondendo de mim, Samir?, a voz da minha ex ecoou para mim, num sonho. Porque está sendo egoísta? Eu não te entendo! Logo abri os olhos, e já eram quase 06h30min. Estava com um nó esquisito na garganta e me sentindo péssimo. Depois que terminamos, percebi que não teria mais a ligação carinhosa de boa noite, ou bom dia, nem mesmo cartas apaixonadas. Não tinha mais nada, nem o amor dela, que seria de outro, em breve. Não era mais meu para proteger, murmurei, sentindo um vazio enorme.
  A conheci numa lanchonete, ao dar um passeio com uns amigos da faculdade e nos demos bem logo de cara. A conversa era fácil, sempre interessante e eu estava carente. Ao contrário do que todo mundo achava, eu não era namorador, como a minha irmã. Não dava para confiar em qualquer uma.
   Porém, senti que ela me entendia, ao afirmar que nunca julgava alguém pelo seu passado. Todos cometem erros, falou, mas mostrava uma certa repulsa ao ler nos jornais casos de homicídios suspeitos. Não dá para aceitar alguém que faz isso, confessou, numa tarde, e eu ignorei o comentário, o que foi uma falha. Acho que alguns erros importavam, para ela.
   Apertei os olhos ardidos e enfiei o rosto contra o travesseiro, tentando impedir que uma lágrima saísse, sem sucesso. Desisti e levantei devagar, atordoado, com o olhar triste dela ainda na cabeça. Você não me entende e acho melhor não continuarmos juntos, eu falei, na época.
  Fui embora e nunca mais nos falamos. Tentei melhorar a cara e me arrumei, indo para a cozinha, em seguida. Miguel e a noiva já estavam lá, comendo alegres, e forcei um cumprimento animado, porque ver todo aquele amor deles não estava me fazendo bem.

— Meu bem, promete que vai cavalgar com cuidado? — Beatriz perguntou para ele.
— Bia, eu sempre cavalgo. — respondeu com doçura — Pode ficar tranquila. Só não sei se a Sâmia também vai jogar conosco.
— Jogar o que? — perguntei, ao me sentar e pegar o café.
— Teremos uma partida de Polo, hoje, lá pelas 9 horas, com alguns dos convidados de ontem. Se o pé dela não melhorar, não vai poder participar.
— Como assim, querido?
— É que o Samir disse que ela torceu o pé ontem, na festa. — ele explicou, e fiquei surpreso de como o que eu disse se espalhou rápido.
— Coitada! — Beatriz falou, preocupada — Ah, esse bolo está uma delícia! Estou morta de fome!
— Esse já é o 4º pedaço, amor. — disse, rindo — Está faminta mesmo!
— Minha fome aumentou nos últimos dias.

  Refleti no que houve ontem, com a Sâmia mentindo na minha cara. Completamente louca e mentirosa. Não acreditei em nenhuma palavra do que falou. Estava fácil demais! Eu só me dou mal, nesses trabalhos! O que houve na cozinha foi muito esquisito! E para piorar, o vazio de sempre ainda me incomodava.

— Samir, você está bem? — Beatriz perguntou, e nem notei que tinha me perdido nos meus pensamentos, lembrando do sonho que tive, fora que ninguém com coração partido fica bem.
— O que?
— Você está bem? Ficou com uma expressão estranha.
— Eu não dormi bem, foi isso. — menti, esfregando os olhos — Acho que estranhei o colchão.
— Ah, pode ter sido. Sâmia! — ela soltou, e a outra logo entrou, se ajeitando ao lado do irmão, também com uma cara ruim, me fazendo estremecer — Bom dia, querida. O seu pé está melhor?
— O que? — ela perguntou e notei que estava com os olhos avermelhados.
— Samir disse que machucou o pé. — respondeu, e Sâmia apenas balançou a cabeça, concordando, mordendo um pedaço de pão, lançando apenas um rápido olhar para mim, e minha mãos começaram a suar.
— Então, é por isso que está com essa cara? — Miguel perguntou, e a irmã revirou os olhos — Nem vai precisar amputar. — disse, soltando uma risada.
— Olha, eu me machuquei, mas estou bem. Se não reparou, estou com a roupa do jogo, inclusive.
— Ah, é mesmo! — concordou, rindo, dando um gole no café, e ela soltou um suspiro irritado — A Bia está acabando com o bolo! Já está no 4º pedaço. — soltou, e Sâmia olhou para a jovem com a testa franzida, disfarçando um sorriso.
— Deixa a sua noiva quieta! Ela pode comer o quanto quiser.

  Até que o uniforme era bonito: uma camisa com gola, da cor da areia da praia, e uma calça e botas pretas, iguais às do irmão. Puxou todo o cabelo médio para o alto, prendendo-o num rabo de cavalo. Os lábios não estavam mais tão vermelhos, apenas com um batom levemente alaranjado, dando um ar mais natural à boca. Os olhos estavam marcados como ontem: um fino traço preto na parte superior.
  Me forcei a desviar o foco dela, porque estava começando a sentir um formigamento por baixo da pele, e também o casal conosco poderia estranhar. Era impossível não lembrar do que houve ontem, na biblioteca. Ela é uma assassina, pensei. Nunca mais vou me aproximar tanto dela, não, nunca mais. Acho que eu preferia que Sâmia fosse terrível, mas não, era muito simpática — realmente simpática — e pessoas assim são atraentes. Com certeza, ela sabia disso.
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Hasan    Where stories live. Discover now