𝟐𝟕. 𝑺𝒆𝒏𝒕𝒊𝒎𝒆𝒏𝒕𝒐𝒔.

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                                  Sâmia

Sexta-feira, 26 de Abril de 1957

— Então, Sâmia, como foi que o seu irmão conheceu a Beatriz? — Samir perguntou, me obrigando a tirar os olhos das inúmeras contas que eu passei o dia fazendo, sentada à mesa, a pedido do meu pai, para reduzir os gastos em casa.

  Estávamos na biblioteca, às 15h45min, e já chovia desde a noite passada, o que me impediu de sair de casa. Dei graças a Deus, pelo fato da piscina estar num cômodo fechado, o que me permitia nadar mesmo debaixo de uma tempestade. Papai estava preocupado, querendo evitar toda a despesa possível. Era importante preservar a sua herança, e como eu era boa com números, sempre o ajudava nas finanças da casa.

— Ela estudou no Instituto de Educação, assim como eu. Eu dormia na casa da minha avó, que morava perto, e vinha para cá, no final de semana.
— Então, você que os apresentou? — perguntou, sentado na poltrona à minha frente, aproveitando que a porta estava fechada, com um ar sarcástico, colocando uma rosquinha de chocolate na boca, e senti minha pele formigando.
— Sim. Ela era de duas séries à frente da minha. Eu tinha 15 anos. Puxou assunto comigo, ao sair do banheiro, perguntando se a saia estava suja. Nos vimos de novo, depois, no almoço e, desde então, não paramos de conversar.
— E como o Miguel entrou nessa história?
— Eu sempre a convidava para passar o final de semana aqui e foi assim que conheceu o meu irmão. Foi amor à primeira vista. — falei, com um gracejo.

  Levantei da cadeira e sentei sobre a mesa, cruzando as pernas, ao lado da poltrona do meu guarda-costas. Notei que ele levou o olhar para os meus joelhos descobertos, graças à saia uns centímetros mais curta, mas desviou logo. Estava sem o paletó, e percebi que estava usando a tal camisa com asas negras por baixo da de cima. Porque sempre a usa?, pensei.

Uai, que gracinha! — falou, sarcástico, segundos depois, abrindo um sorriso bobo, bem fofo, inclusive — E você não a induziu a se apaixonar pelo seu irmão, né?
— Acha que eu faria isso? — perguntei, com a mão direita sobre o peito, fingindo estar indignada.
— Mas é claro que sim! — afirmou, se inclinando para mim — Eu sei que você é capaz de qualquer coisa, inclusive se livrar de uma namorada para colocar outra no lugar.
— Achei que era necessário. — falei, me inclinando na sua direção — Meu irmão está de casamento marcado e nunca o vi tão feliz. Com certeza, ele não seria com a Melissa. Posso ter falado bastante sobre como o Miguel era maravilhoso, e ter dito para ele como a Beatriz era incrível. Minha futura cunhada era tão meiga e o meu irmão estava carente o suficiente para as coisas acontecem naturalmente. Só dei um empurrãozinho. — falei, dando de ombros.
— Sim, agiu como se eles fossem peças num jogo de xadrez.
— Fiz o que era preciso, Samir. — confessei, encarando-o — Eu queria que meu irmão fosse feliz e estou prestes a conseguir. Nunca fez o que era preciso para proporcionar algo melhor para alguém?
— Claro que já. O noivado da minha irmã é uma prova disso. Posso ter dado uma ajudinha, assim como você. Só quero saber qual o meu lugar nesse jogo que anda fazendo, se é que tenho. — falou, se esticando e pegando mais uma rosquinha na tigela ao meu lado, roçando o braço na minha saia de pregas marrom.
— Não se preocupe, você não é um peão qualquer. — falei, com um sorriso pequeno, e ele riu baixo — Olha, desisto. Não tem mais o que cortar no orçamento dessa casa. — disse, me afastando dele e sentando no sofá, encostado na janela — Se demitir outro funcionário, vai prejudicar o andamento do serviço aqui. Meu pai anda muito estranho, falando direto em economizar. Não sei o que está havendo.
— Ele pode estar apenas revendo as finanças.
— Deve ser. Sabe o que é engraçado? —  ele fez que não, com a cabeça — Até agora, ninguém veio aqui nos ver. Estamos sozinhos já tem horas.
— Mas porque viriam ver? — perguntou, com um ar debochado, se sentando ao meu lado.
— Talvez porque eu seja uma donzela ingênua sozinha com um homem. — respondi, e ele riu baixo.
— Eu não sou perigoso, para você. Seus pais sabem disso.
— Sabem? — indaguei, irônica, virando para ele.
— E exatamente no que eu seria perigoso para você? — perguntou, virando o corpo na minha direção, olhando-me fixo.
— Ah, talvez tente me seduzir, já que sou tão jovem e inocente.
Uai, é inocente, desde quando? — perguntou, com aquele sotaque tão agradável, e eu respondi com um sorriso — E como é que eu iria te seduzir, para começo de conversa?
— Não sei, como faria isso?
— Olha, nem sempre o meio para seduzir alguém é direto.
— Eu sei, e prefiro do modo mais sutil possível, principalmente se estiver no meio de outras pessoas. — falei, e ele me olhou, surpreso — Por exemplo, ficar bem próxima. — continuei, chegando mais perto dele — Mexer no cabelo e olhar fundo. — puxei o cabelo para o ombro, encarando-o, e sua expressão mudou, e reparei que encolheu os dedos das mãos.
— Eu te vi fazer isso, com o Eduardo.
— Acha que fiz direito?
— Fez sim, mas na próxima vez tem que fazer isso com a pessoa certa, que seja capaz de te fazer sentir protegida só de estar do seu lado, que consiga te aquecer toda só de tocar na sua mão. — explicou, segurando a minha mão suavemente entre as suas, e minha pele voltou a formigar — E que só de te olhar nos olhos, te faça entender que não está mais sozinha e que te entende melhor do que ninguém. E se sente única, e que os amores passados não importam mais, apenas aquele ali parado na sua frente.

  Senti o coração acelerar com o eco do que ele disse em meus ouvidos. Tentei desviar os olhos dele, tão claros como a água, mas não consegui. Me sentia muito bem com o Eduardo, porém acabou me magoando. Não enxerguei como realmente era, apesar de ter visto sinais outras vezes de que não pensava como eu.

— E toda vez, vai querer se aproximar desse homem, mesmo sabendo que ele te faz queimar de dentro para fora, chegando a te enlouquecer. Só que você vai querer sentir isso cada vez mais. — continuou — Você já se sentiu assim com o Eduardo? — perguntou, me arrancando dos meus pensamentos.
— Sim, mas não tanto quanto você disse. — falei, pensativa, estranhando o que acabei de dizer, porque, por incrível que pareça, era verdade.
— Prova de que ele era o homem errado. E já se sentiu do jeito que falei, alguma outra vez? — perguntou, com suavidade.

  Respondi que não lembrava, mas era mentira. Me senti desse jeito depois do que houve na biblioteca, naquele dia, e na piscina, porém não tive coragem de dizer.

— Tem certeza que não lembra?
— Tenho, sim. Vou sentir, um dia. — continuei, e ele olhou para as minha mãos com uma expressão triste, acariciando-as devagar.
— Vai, sim. — falou, baixo, forçando um sorriso.
— Sei que você vai achar alguém que te ame, mesmo fazendo o que fez. — afirmei, e Samir me encarou com intensidade.
— Sâmia, não vou me iludir com isso. Fiz aquelas coisas porque eu quis. Nem tudo era necessário.
— Você fez porque era capaz. — disse, encarando-o, me aproximando mais — Nem todo mundo é!
— Eu sei que sou um monstro. — confessou, triste, bem baixo.
— E por causa disso, não merece alguém que te ame? Fora que também sou um monstro, já que fiz as mesmas coisas.
— Qualquer um me condenaria.
— Eu, não! Não fique se diminuindo, por favor! — pedi, e ele fechou os olhos por alguns instantes, ao sentir minhas mãos no seu rosto — Merece o amor tanto quanto qualquer um. Você não sentia tanto fogo com a Érica, não é?
— Poderia ter sentido, se conseguisse ser sincero com ela. Sentia uma barreira entre nós.
— Quando achar a pessoa certa, essa barreira não vai existir. Só pare de se diminuir. Você, assim como eu, é capaz de fazer qualquer coisa para conseguir o que quiser. — garanti, e ele balançou a cabeça, concordando.

  Parece que perdemos alguns segundos, nos encarando. Mais uma vez, meu coração estava acelerado. Samir olhou para a minha boca e fiz o mesmo com a dele, que parecia avermelhada. Queria dizer que senti o que ele descreveu, mas com certeza, iria passar a impressão errada. Ele só perguntou por perguntar, pensei. E uma impressão errada poderia prejudicar o trabalho dele, o que eu nunca faria.

— É melhor irmos na cozinha tomar um café. — falei, me afastando e levantando, quebrando aquele clima estranho.
— Tem razão, já estou com fome. — concordou, me seguindo, evitando me encarar, e fiz o mesmo, porque temia olhá-lo de novo e me entregar ao que estava sentindo.
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Hasan    Where stories live. Discover now