𝟖𝟐. 𝑷𝒐́𝒔 𝒇𝒆𝒔𝒕𝒂, 𝒑𝒂𝒓𝒕𝒆 𝟐.

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Terça-feira, 11 de junho de 1957

                                  Samir

  Remexi o mingau de fubá com canela no prato, enquanto os outros tomavam o café da manhã quietos, olhando-me de soslaio. Meu pai acariciava o meu braço, vez por outra, tentando me incentivar a comer, mas eu não conseguia, principalmente depois de ligar para o hospital, ontem à noite e hoje bem cedo, e o funcionário que me atendeu se recusou a dar qualquer informação sobre a Sâmia, alegando que as visitas estavam restritas à família.
  Só não fui até lá outra vez porque não conseguia mais ficar de pé, depois de passar outra noite sem dormir, e minha mãe insistiu que eu descansasse. Bastava fechar os olhos que eu via o rosto dela, sorrindo para mim, ao caminhar pelos corredores da mansão, mas de repente ela caía, sangrando, com o som do disparo ao fundo, que sempre me obrigava a abrir os olhos, tremendo.
  Liguei para a casa da Matilde, que me contou que o doutor Alfredo e os familiares estavam morando temporariamente numa casa que eles tinham próxima ao hospital e forneceu o número de lá.
  Ela estava sendo bem gentil, apesar dos outros empregados para os quais também telefonei e se recusaram a falar comigo, desligando na minha cara. Com certeza, pensavam que eu era culpado.
  Também me contou que o funeral do Miguel e da Theodora seriam naquela tarde, e eu nem tinha forças para ir e ver mais uma cena triste.
  Infelizmente, a minha amada persistia com febre, e cada segundo longe só me arrasava mais, evidente nas minhas olheiras e na falta de apetite. Era impossível comer naquele estado.
  Não demorou muito e os repórteres estavam na nossa porta e na da empresa do doutor Alfredo. Para o meu azar, as primas conseguiram contornar a confusão e entrar junto com minha tia Jamile, que abaixou o olhar assim que me viu.

— Ah, minhas queridas, esqueci que vinham! — minha mãe desculpou-se, passando os olhos por mim — Sentem-se, por favor.
— Está uma confusão, lá fora! Todos estão dizendo pela cidade que a Layla atirou numa criança! Que boato horroroso! — Amina começou, com um ar chocado, ao colocar o pote decorado  cheio de Maamoul, um biscoito típico, no centro da mesa — Os pais dela vão chegar logo. Ah, não imagino como eles devem estar abalados!
— Com toda a certeza! — Nádia concordou, acomodando-se com as demais, à mesa — Pobrezinha! Deve ter sido outra pessoa que atirou.
— Acho melhor nós falarmos de algo mais edificante. Esse final de semana foi turbulento, para muitos. — tia Jamile falou, e foi a primeira coisa útil que fez nessa vida.
— Ah, tem toda a razão! Oh, meu querido primo, que atrocidade fizeram com você! Te agrediram dessa forma tão terrível! — Nádia insistiu, encarando-me, e eu apenas engoli um pouco do mingau, apertando os olhos, sentindo a mandíbula doer — Mas e as artes marciais que você fez? — perguntou outra vez, e apenas suspirei, chateado — Quem fez isso foi o tal ricaço que morreu? Imagina a dor de queimar até a morte! Coitado dele! — soltou, relaxando o corpo na cadeira, depois de pegar um biscoito.
— Coitado de quem, Nádia? — questionei, com a voz cansada, olhando-a fixo, e me retribuiu confusa — Porque o Daniel seria um coitado? PORQUE DIABOS ELE ERA UM COITADO? — bradei, batendo a colher no prato, estremecendo a mulher.
— Filho, não precisa... — minha mãe tentou intervir — Se você quiser, descanse um pouco lá em...
— Responde, prima: porque ele era um coitado? ELE ATIROU NA PRÓPRIA ESPOSA! — berrei, levantando, assustando a todos — Ela pode morrer a qualquer momento e você está com pena dele?
— Samir, se acalme, por favor.
— Não tem como, pai! Quer saber, priminha: várias pessoas morreram naquela casa, e uma delas foi a Layla que atirou em duas pessoas, sendo um delas uma criança, antes de se matar! — continuei, dando a volta na mesa e aproximando-me dela, que se encolheu na cadeira — O Daniel pode muito bem ter incendiado a mansão, graças a companhia da sua maldita garrafa de conhaque e a paranoia dele! E agora a Sâmia está naquele hospital, correndo o risco de... — hesitei, me afastando, sentindo o choro vindo.
— Eu sinto muito pelo que aconteceu com todos, inclusive essa moça, Samir. Tenho certeza que os pais providenciaram os melhores médicos e que ela vai ficar curada logo. Não precisa se afligir tanto!
— Não preciso? COMO NÃO VOU FAZER ISSO? É impossível não me importar com ela, Nádia! QUANDO QUE VOCÊ OU QUALQUER UM VAI ENTENDER, DIABOS?!
— Samir, por favor, se acalme!
— EU NÃO VOU ME ACALMAR! Vocês não são capazes de...

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