𝟖𝟔. 𝑪𝒂𝒔𝒐 𝒆𝒏𝒄𝒆𝒓𝒓𝒂𝒅𝒐.

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Quarta-feira, 24 de julho de 1957

                                 Samir

 
  Mesmo com os detetives arrastando as investigações por mais de um mês, e o advogado do maldito insistindo num possível homicídio, foi constatado que Daniel teve um surto agravado pelo consumo excessivo de álcool, aonde tentou matar a sua esposa inocente, e desmaiou após beber demais, ficando impossibilitado de sair do quarto, morrendo em consequência do incêndio que se espalhou pela casa, provavelmente causado por ele mesmo.
  Foi ignorada a possível facada, o que me causou um grande alívio. Benedito Gonçalves fez questão de depor a meu favor, junto com a dona Madi, o doutor Alfredo, a Matilde e a Leonora.
  Nos reunimos na própria delegacia para ouvir os detetives, que não pareciam nada satisfeitos. Otávio protestou, em vão, alegando que eles eram incompetentes e o seu chefe era uma vítima.
   Nesse meio tempo, o inventário tinha sido feito por ele, que tentava desesperado, segundo o doutor Abelardo, achar outros herdeiros da fortuna do Daniel. Essa viúva não vai ver um centavo, ele soltou, assim que saímos do local.
  Obviamente, foi um esforço em vão, pois não havia ninguém vivo, e ela foi declarada a única herdeira, assumindo vários milhões e 65% da Minério Magalhães. Agora ela era a viúva mais linda — e mais rica — do Rio de Janeiro. A imprensa se acalmou, depois de fazer um prato cheio por dias com o que houve.
   Logo a notícia sobre um homem de Icaraí, que fugiu com a enteada de 17 anos, tomou conta de várias linhas do jornal, e nos esqueceram. Estava na hora de seguir com os nossos planos, por isso, peguei a arma e os documentos, devolvidos pela polícia, coloquei a minha mala no carro, sem que meus pais vissem, e fui até a casa do doutor Alfredo, para me despedir.

— Graças a Deus, tudo acabou, rapaz. Até os pontos do ombro da Sâmia se foram. O ferimento já cicatrizou e ela não sente mais dor. — contou, com ânimo na voz.
— Que bom que ela se recuperou. — falei, sorrindo, pois não a via há uns dias, por insistência do advogado, e só nos falamos por telefone — Eu só queria agradecer por tudo o que fez para me ajudar. — soltei, sincero, enquanto andávamos no pequeno jardim dos fundos — Não teria conseguido sem o senhor.
— Era o mínimo que eu devia fazer por você, Samir. Se arriscou demais por ela.
— Ainda acho que o tiro era pra mim. — confessei, triste com a lembrança.
— Talvez o Daniel soubesse que você sentia algo por ela.
— Senhor, eu não...
— Tudo bem, se você gosta da Sâmia, não te culpo. Ela é encantadora. — afirmou, sorrindo, e acabei rindo junto — É difícil controlar o que sentimos, mas podemos controlar o que fazemos. Tem gente que acha que vocês são amantes. — soltou, e respirei devagar, pensativo — Você nunca quebraria a minha confiança, não é, Samir? — questionou, olhando-me fundo.
— Não quebraria, senhor. — menti, retribuindo o olhar — Eu fiz o que precisava. Protegi o que era importante.
— Importante para quem, exatamente? Para você ou para mim?
— Não teve um segundo em que não desejei ser atingido por aquele tiro no lugar dela, senhor. Daria a minha vida para protegê-la, se necessário. Não há nada que eu não faça pela Sâmia. — respondi, e a preocupação moldou a sua face.
— O que aconteceu naquela noite, em que vocês ficaram escondidos no estábulo? — indagou, o que me pegou de surpresa.

  Antes que eu respondesse, nosso foco se desviou para Sâmia, que apareceu devagar por trás da quina da porta da cozinha, encarando-me com a mesma doçura de sempre.
  Precisei desviar o foco dela, enquanto vinha até nós em passos tranquilos, usando aquele mesmo short curto vermelho de antes, deixando o sol da manhã iluminar sua pele.

— Bom dia, pai. — o cumprimentou com um abraço, que o pai retribuiu com cautela — Tudo bem, não dói mais. — soltou, com a risada que eu sempre amei, após se afastar do homem e voltar a atenção para mim — Bom dia, Samir. — disse, com um sorriso marcando as covinhas.
— Bom dia, Sâmia. — respondi, tentando respirar com calma, sentindo-me leve, e a sua presença só acelerava o meu coração — Você está bem?
— Sim, me recuperei bem rápido. Já consigo mexer o braço normalmente. E como você está?
— Melhor, agora que as investigações acabaram. — respondi, sentindo o seu olhar tão fixo em mim,  vendo sua respiração levemente alterada.
— Fico feliz de saber. Não sei como te agradecer pelo que fez. Obrigada por me tirar de lá. — agradeceu, com o brilho de uma lágrima — Eu teria morrido sem você.
— Tudo bem, só fiz o necessário. Eu que agradeço por terem provado a minha inocência. Achei que iria a julgamento, mas não precisei, ainda bem.
— Não havia motivo, até porque não podiam provar direito o que houve. O que pretende fazer agora?
— Vou passear, por uns tempos.
— Que bom! Eu vou viajar para Mônaco, em alguns dias. — falou, o que pegou o pai de surpresa — Sempre quis conhecer a terra aonde vive a princesa Grace. — contou, sorrindo, com os olhos brilhando.
— Podia ter dito antes, filha. Talvez a Madi queira te acompanhar. Creio que ela gostaria de se afastar de tudo isso. E na próxima vez que sair sozinha, por favor, nos avise. — ele pediu, e ela disfarçou o desagrado ajeitando a faixa rosa no cabelo.
— Eu ainda não sei para onde vou. Também não vou mais trabalhar como guarda-costas. Não dá mais, depois do que houve. Só vim me despedir.
— Vamos sentir sua falta. Caso mude de ideia, mande uma carta pedindo as suas referências. Terei o prazer em dá-las. Adeus, Samir. — disse, envolvendo-me num abraço apertado e demorado, soltando-me, emocionado.
— Vai ser estranho sem ter você me seguindo para todo o canto. Até a próxima.

  Puxei discretamente do bolso a chave do meu apartamento e passei para ela ao abraçá-la, sem que o pai visse. Tocá-la, depois de tanto tempo, foi reconfortante, principalmente sem precisar nos esconder para isso.
  Em dois dias, vá com a mala pronta, sussurrei, rapidamente no seu ouvido, e nos afastamos logo. Dei adeus e fui até a Matilde, no portão, que também me abraçou forte, desejando tudo de bom.
   Entrei no carro e segui um tempo até chegar em Copacabana, entrando no escritório do Benedito, que como sempre recebeu-me nervoso, e entreguei-lhe um envelope com o desenho de uma joia de minha autoria, que tirou o seu fôlego. São os juros, contei e parti, dirigindo até o meu apartamento, para aguardar a hora de partir com a minha flor de Cicuta.
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Hasan    Where stories live. Discover now