𝟔𝟗. 𝑶 𝒄𝒂𝒏𝒅𝒊𝒅𝒂𝒕𝒐 𝒆 𝒐 𝒄𝒂𝒅𝒂́𝒗𝒆𝒓.

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                                 Sâmia

— Papagaios! Bem que me disseram que o doutor casou com a senhora! — ele soltou, animado, me encarando, arreganhando os dentes — Meus parabéns!
— Quem que... — tentei falar, voltando a descer, vendo Samir se aproximar, igualmente espantado com ele.
— Ah, com certeza não se lembra de mim. Eu fiz uma entrevista para guarda-costas, na sua casa, faz algumas semanas, mas passei mau. — explicou, assim que cheguei ao chão — Foi um dia bem esquisito e... Opa, Samir! Como é que vai? — perguntou, caminhando até ele, estendendo-lhe a mão, que o outro apertou, igualmente assustado.
— Tudo bem, Felipe.— cumprimentou, com um sorriso amarelo — Quando começou a trabalhar aqui?
— Uns dias depois, daquela entrevista. O doutor Alfredo me recomendou para o doutor Daniel, que me contratou. Essa casa é linda, não é? — perguntou, e Samir apenas desviou o olhar para mim, ao me aproximar, com o eco dos meus saltos brancos novinhos no ar — Está tudo bem, gente? Que clima tenso aqui! — soltou, irônico, levando o foco de mim para o meu guarda-costas.
— Houve uma emergência na casa dos meus pais e preciso ir lá ver o que houve.
— Ah, eu espero que não seja nada grave. Bem, se precisar, estou a disposição.
— Muito obrigado. É melhor irmos logo, Samir. — falei, e seguimos até a porta.
— Mas a senhora vai sozinha com ele? Pensei que o Samir ficaria aqui e faria a segurança da casa, igual a mim.
— Ele me segue aonde eu for. O Daniel se preocupa muito com a minha segurança. — respondi, tentando parecer o mais inocente possível, porém o seu ar desconfiado estava me incomodando muito.
— Certo, certo. — respondeu, nos analisando — Bem, nos vemos mais tarde, senhora.

  Acenei com a cabeça, saindo de pressa, e entrei no carro, sentando no banco de trás, como o Daniel geralmente fazia. Queria muito ir ao lado do meu amado, como sempre fiz, em todas as nossas fugas, aonde ele dividia a atenção entre a estrada e as minhas pernas, fazendo questão de correr a mão direita na minha pele, começando pelo joelho, subindo devagar pela coxa, me roubando um beijo, até o som de uma buzina vizinha o alertar e voltar o foco para o caminho, enquanto ríamos, contentes por não capotar ou bater na traseira de um caminhão.
  Agora era diferente. Eu devia manter distância dele, o quanto conseguisse, sempre com um ar frio, para disfarçar o que sentia. O vi observando-me pelo retrovisor, e o meu corpo formigou, com a ideia de parar o carro em algum lugar deserto e deixá-lo tirar as minhas roupas.  Contudo, puxei o cabelo do ombro e me obriguei a pensar em outra coisa, como no que nos aguardava na casa dos meus pais.
  Não consegui trocar uma palavra com Samir, no breve trajeto, e eu não entendi o porque. O assunto simplesmente morreu. Deve estar disfarçando também, refleti, me mantendo calma.
  Finalmente, cruzamos os portões e os carros da polícia estacionados lá dentro gelaram o meu estômago. Paramos alguns metros da porta principal e entrei com Samir atrás de mim, seguindo as vozes vindas da sala de estar da Madi, que chorava nos braços do meu pai, muito abalada.
  Ela não merecia, ela não merecia, repetia sem parar, enquanto Matilde tentava convencê-la a tomar um copo de água com açúcar. Olhei ao longo do corredor e vi tia Esmeralda entrar nervosa numa das salas que usávamos para assistir televisão, e a segui. Ela tinha sido a penúltima a ver a Érica viva, e poderia me ajudar a encontrar o culpado perfeito pela sua morte.

— Tia, está tudo bem? — perguntei, ao fechar a porta.
— Como posso estar bem? Tem um defunto na nossa propriedade! — soltou, com a voz trêmula, apontando para o ar — Que Deus tenha piedade de mim! Uma moça inocente foi assassinada e os cães ainda por cima arrancaram e comeram parte do corpo! A coitada vai ser velada mutilada e com o caixão fechado! Nem sabem como ela morreu!
— A senhora discutiu com ela, por isso a Érica saiu correndo da casa!
— Nem pense em jogar a culpa em cima de mim, mocinha! — alertou, se aproximando de mim, com o dedo em riste — Eu ouvi dizer que os pais dela acusaram o Samir pelo sumiço da garota, então quem não garante que ele é o culpado?
— Ele não fez nada, tia. — garanti, com a voz calma.
— Aliás, porque ele ainda é o seu guarda-costas?
— Porque confio nele e nunca se comportou de maneira imprópria!
— Não me venha com ladainhas, Sâmia! Eu notei o modo como ele te olha, na verdade, sempre olhou assim!
— Assim, como? — questionei, irritada.
— Com o olhar de quem está perdidamente apaixonado. — afirmou, e apenas encarei-a fundo, sem uma resposta — É isso, não é? E pelo visto você também sente algo, não sente?
— A senhora está louca!
— Pensa que não sei que foi você que colocou os cacos de porcelana no meu sapato?
— Que cacos? — indaguei, e sem querer deixei um risada escapar — Definitivamente, perdeu o juízo!
— Vocês dois estão tendo um caso! Sempre cochichando, andando por aí aos risos! E aquela vez, na cozinha, aonde falei aquilo sobre a namorada dele e vocês dois transformaram num espetáculo! — reclamou — Quer saber a verdade? Se eu pudesse, dormiria sim com o Samir e você não poderia fazer nada para impedir!
— Não ia mesmo, não se preocupe. — falei, sincera.
— Ah, está duvidando? — rebateu, aborrecida — Pois fique sabendo que posso satisfazer tanto o Samir quanto qualquer homem que eu quiser!
— Acho difícil, até porque bastasse deitar na cama com um qualquer que os seus ossos secos virariam pó, no primeiro tranco. — soltei, caindo na gargalhada.
— SUA MALDITA! — esbravejou, agarrando os meus braços com força, me chacoalhando — Vou ter uma conversinha com o seu marido e ele vai acabar com seu querido guarda-costas e com você! — avisou, e encarei-a fundo — Se acha que vou deixar isso tudo passar está enganada e essa sua vidinha perfeita vai virar cinzas!
— Me solta, agora!
— Lembre-se que sei do seu segredinho sujo!
— Nem pense em me ameaçar, tia! — avisei, desvencilhando-me dela — Quem garante que a senhora não matou a Érica?
— Como tem coragem de sugerir isso?

  Então as engrenagens na minha mente giraram e a minha fala se perdeu no ar.  Aquele incidente na cozinha foi ridículo, porém, analisando melhor, foi bom que tenha acontecido. Todos viram como ela foi agressiva, agarrando o meu braço, enraivecida. Todos viram, todos viram, repeti mentalmente.

— Que foi? Vai ficar aí parada, me olhando? — queixou-se.
— Tudo bem, tia, eu entendi. — prossegui — Deixa que eu conto para o Daniel o que sinto, vai ser melhor. — comecei, vendo o seu rosto envelhecido repuxar com o sorriso largo de satisfação — Só me dá até o final da semana, por favor. Ele viajou a negócios e está indisponível.
— Claro que te deixo resolver, sobrinha. — respondeu, irônica — Você tem até o final da semana para isso.

  Concordei com um aceno de cabeça e saí, caminhando rápido pelo corredor que conhecia desde pequena. O cheiro da madeira provocou uma onda de calor terrível, e fui até os policiais, fingindo nervosismo. Um deles pediu para reconhecer a vítima e eu prontamente o fiz, vendo a expressão sofrida dela, com o rosto pálido arranhado pelos cães e os lindos cabelos dourados sujos de lama.
  É ela mesma, afirmei, com a voz trêmula e me afastei depressa, parecendo abalada. Olhei na direção da casa e Samir estava parado na entrada, vendo-me claramente. O vento perfumado com as rosas soprou e espantou do meu nariz o cheiro de carniça. Coloquei os óculos escuros, calmamente, porque os obstáculos que nos separavam seriam logo derrubados, assim como a Érica.
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Hasan    Onde histórias criam vida. Descubra agora