𝟖𝟕. 𝑭𝒖𝒈𝒂.

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Sexta-feira, 24 de julho de 1957.

                             Sâmia

  Arrumei uma mala simples, pouco antes de ir dormir, e levantei muito cedo, talvez umas 5h30min. Papagaios, mal consegui dormir com a ansiedade me consumindo! Pensei na Zaina, que veio aqui, após o almoço, no mesmo dia em que Samir se foi, em busca de notícias dele, trazendo um bilhete que a mãe encontrou na mesa da cozinha:

“Querida família,
Peço perdão por ter causado tanto estresse, nesses últimos dias, ou melhor dizendo, nos últimos anos. Prometo que será melhor, a partir de hoje. Depois do que houve, precisei com urgência me afastar e refletir no que fazer daqui para frente. Desculpa por sair sem avisar, porém tenho certeza que vocês tentariam me impedir. Estou bem, não se preocupem, e retornarei em breve. Mando notícias, assim que possível. Amo a todos!
Com carinho, Samir.”

  Jurei que não fazia ideia, o que era verdade. Também queria saber o seu paradeiro, e sugeri que ele talvez tenha ido para a Inglaterra, o que foi descartado pela irmã, alegando que ele não gostava de frio.
  Ela foi embora, depois de perguntar como eu estava e pedi perdão por tudo o que causei. Não a queria chateada comigo, até porque entraria para a família, muito em breve.
  Zaina me abraçou apertado, garantindo que não me odiava, apenas não estava feliz com o modo como tudo aconteceu. Espero que cuide bem do meu irmão, soltou, com um sorriso belo igual ao dele, partindo, em seguida.
  Meu pai passou o dia pensativo, e pouco antes de dormir, passei por ele na cozinha vazia, enquanto tomava um chá calmante, sozinho, com uma cara estranha. Me chamou e sentei ao seu lado, pegando um pouco da geleia de amora e passando em algumas torradas que estavam ali na mesa.

— Conseguiram recuperar os mantimentos da cozinha na mansão, por sorte.
— Mas a cozinha não pegou fogo, só parte do segundo andar. E nossas roupas de perderam. Obrigada por retirar o meu cofre de lá. A vovó me deu e não vivo sem ele. Pai, aconteceu alguma coisa?
— Esses dias foram difíceis, só isso. Sinto falta dos seus irmãos. O Miguel que geralmente tomava chá comigo, antes de dormir.
— Eu também sinto falta deles o tempo todo. — falei, triste.
— Sabe o que é engraçado? O Samir comia bastante dessa geleia. A Madi deu falta de alguns potes, mas ninguém sabia quem tinha comido.
— Me lembro! Essa geleia eu fiz naquela vez, na casa da Leonora. Ele gostou bastante. — contei, animada, pensando em todas as vezes que comemos juntos, no silêncio do seu quarto, sem uma peça de roupa.
— Porque você sorriu no funeral do Daniel? — questionou, e não tive reação — Porque o Samir também sorriu?
— Não sorrimos, pai. — discordei, tensa.
— Filha, eu não vi errado. — continuou, calmo — O que aconteceu naquela noite, no estábulo?
— Eu só me escondi lá e o Samir...
— Sim, te convenceu a voltar. — interrompeu, completando a minha frase — Sabe o que passou despercebido, no momento? Foi o fato do smoking dele estar completamente sujo de areia e ele sem a gravata. Uma das empregadas mencionou que as suas roupas estavam sujas da mesma forma. Quer me explicar isso?
— Eu sentei no chão, por um tempo, e ele fez o mesmo.
— Sentou ou deitou?
— Como?
— E a gravata?
— Pai, eu não sei! Porque está me perguntando tudo isso?
— Quem te deu aquele colar?
— Foi comprado em Icaraí, pai! — respondi, me levantando, irritada — Qual o problema?
— O problema é que andei distraído demais, nesses últimos dias. — soltou, vindo até mim — Eu sei que promessas são extremamente importantes para você, então gostaria muito de acreditar que não estava tendo um caso com o Samir dentro da minha casa, ainda mais depois de se casar. Sempre te ensinamos a importância da fidelidade, pelo que me lembro.
— Não fizemos nada, pai. Sempre fui leal às minhas promessas. Fui fiel a quem prometi ser fiel. O senhor mesmo viu, na cerimônia do meu casamento.
— Só que você desmaiou, se não falha a memória, e não fez os votos, ou seja, não prometeu nada. E se não prometeu, não precisaria cumprir nada. — afirmou, olhando-me fundo — Já reparei em como vocês se olhavam no funeral, e, pensando bem, também em outras ocasiões. Sei que não gostava do Daniel, filha. É muito fácil se envolver com outro, nessas situações, principalmente com alguém tão próximo, como o Samir. Pois bem, Sâmia: vocês estavam se envolvendo?
— Pai...
— O Daniel descobriu tudo e por isso atirou em você? O Samir era seu amante?
— Não, pai, não tínhamos nada além de amizade. — menti, o mais tranquila possível, até porque ele não queria acreditar na verdade — Ele só cumpriu bem o seu dever, apenas isso. Fique despreocupado, pai. Não aconteceu nada de impróprio. — reforcei, com um abraço que ele retribuiu, após alguns segundos — Agora preciso deitar. Boa noite.

  Passei a maior parte dos dias sentada na beirada da pequena piscina vazia dos fundos, pensando no Samir, lembrando das nossas conversas no travesseiro, e do quanto sentia falta dele me seguindo por todo o canto. Foi o período que mais me senti sozinha.
   Finalmente, saí escondida, com todos dormindo ainda, e caminhei apressada até o ponto de ônibus, quadras depois da minha casa.
  Felizmente, tempos depois, um táxi passou e gastei um dinheiro considerável para ele me levar até a Tijuca. Refleti no caminho a respeito do bilhete que deixei. Não sei como reagiriam, porém demoraria a descobrir:

“Queridos papai e Madi,

Desculpe por desaparecer dessa forma, mas eu não aguentava mais ficar aqui com tantas lembranças ferindo-me tão profundamente. Vou passear por uns tempos, e preciso fazer isso sozinha. Assim que eu chegar no meu destino, mando notícias. Não se preocupem, essa viagem me fará bem. Amo todos vocês.

Com amor,
Sâmia.”

 
  Por fim, desci do táxi, ajeitando os óculos e o lenço no cabelo, subindo rápido no prédio do Samir, e só respirei aliviada quando passei pela porta do apartamento.
  Deixei o silêncio e aquela atmosfera tranquila me envolver, caminhando até o quarto, aonde deixei a minha mala, pegando um dos travesseiros macios sobre a cama. O cheirei, e ele ainda tinha o perfume do meu amado, o que só aumentou a minha saudade.
  Circulei pelo espaço, vendo que não estava lá, e encontrei sobre a mesinha de centro da sala uma vitrola portátil com um disco de alguém chamado Achille Togliani, que coloquei para tocar, ouvindo aquela canção tão suave se espalhar pelo ar. Parlami d’amore Mariú, era o nome dela, escrito na capa.
  Uma caixinha de veludo rosa aguardava ao lado e dois envelopes brancos que tratei de olhar. Eram duas passagens de navio da primeira classe para Roma e sorri instantaneamente, animada com o destino.
  Abri a caixinha e emocionei-me ao ver o meu colar que pensei ter perdido no incêndio. Segundos depois, Samir entrou com umas sacolas e veio até mim, contente, acariciando o meu rosto com cuidado, também emotivo.

— Pode me abraçar, não dói mais. — soltei, envolvendo-o com os braços, e ele retribuiu, apertando-me, como sempre.
— Senti tanto a sua falta, meu amor. Não via a hora de te ver aqui! — confessou, me beijando com o desejo costumeiro — Alguém te viu sair?
— Não, saí muito cedo. Meu pai começou a perguntar se tínhamos um caso, mas o convenci que éramos apenas amigos. — contei, em tom debochado, seguindo-o até a cozinha.
— Amigos, uai? — indagou, irônico, com um sorriso torto — Podia ter respondido “ah, papai, ele é o amigo que comia geleia de amora comigo sem as roupas”. — soltou, e rimos bobamente, ao tirarmos o café da manhã das sacolas.
— Ou podia dizer que é o amigo que tomava banho de piscina pelado comigo bem tarde da noite. — acrescentei, cutucando o seu braço, e nos sentamos para comer — Vamos para Roma?
— Sim, e depois vamos para minha casa, em Positano. — informou, o que me surpreendeu, enquanto eu comia o pão com ovo.
— Não acredito! Quando comprou uma casa lá?
— Tem uns meses. Foi depois do meu último trabalho. Mandei uma carta para o caseiro faz uns dias, avisando sobre a nossa chegada. Você vai amar a cidade! Vamos para um lugar aonde não precisaremos mais fingir e seremos livres. — falou, segurando na minha mão, enchendo-me de esperança — O navio parte às 13 horas e daremos adeus a isso tudo, pelo menos por um tempo.
— Finalmente juntos, Samir, juntos! Foi você que achou o meu colar?
— Tirei do seu pescoço, pouco antes de entrar no hospital. Não faz ideia do meu desespero quando ele atirou em você e... — começou, com as lágrimas interrompendo-o.
— Ninguém vai me tirar de você, Samir! Sou só sua! — garanti, secando o seu rosto — Nada mais vai ficar no nosso caminho.

  Depois que comemos, pegamos as malas e partimos. Quando finalmente chegamos no navio e nos acomodamos no quarto, tentei me aproximar dele, mas senti que ainda temia me tocar. Não vai me machucar, meu amor, reafirmei, puxando-o pela roupa, e antes mesmo de chegarmos em auto mar, já tinha arrancado o meu vestido e me jogado na cama.
   Ele finalmente tinha deixado o medo de lado, ao tirar rápido a própria roupa e me penetrando com vontade, apertando as minhas coxas com tanta força que nem sei como nunca fiquei com marcas na pele.
  Samir olhou-me fundo, acariciando o colar no meu pescoço, e naquele momento tive certeza que nada mais nos separaria. Quer se casar comigo?, ele sussurrou no meu ouvido, ainda ofegante, e não hesitei em dizer sim.
   Então ele foi até a sua mala no pé da cama e tirou do fundo uma caixinha preta, pegando nela as alianças e colocando uma delas no meu dedo anelar esquerdo. É para se acostumar a usá-la, disse, rindo, e fiz o mesmo com sua mão.
  Levaria alguns dias até chegarmos em Roma, então ficamos ali, deitados, sentindo a brisa salgada do mar, tranquilos por acreditarem na nossa inocência e mais ainda por estarmos finalmente juntos.
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