𝟖𝟗. 𝑵𝒊𝒕𝒆𝒓𝒐́𝒊, 𝒑𝒂𝒓𝒕𝒆 𝟐.

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Segunda-feira, 30 de setembro de 1957.

                                Samir

— Oh, filho, eu fico tão feliz de te ver bem! — minha mãe soltou, animada, segurando a minha mão sobre a mesa, ao jantarmos na companhia da minha irmã, o seu marido e a minha tia Jamile.
— É verdade, filho, eu também estou satisfeito por estar assim. Os últimos dias foram horríveis. Bem, já que não vai mais trabalhar como guarda-costas, o que pensa em fazer?
— Eu vou comprar uma casa que vi aqui perto e vou para a faculdade. Quero um emprego na área administrativa, em algum lugar. — contei, e me olharam surpresos, com um ar contente e aprovador — Talvez a gente comemore o nosso aniversário lá, Zaina, já que é no próximo dia 7.
— Meu filho, isso é maravilhoso! Você finalmente está pensando no futuro! Por acaso, está pensando em se casar?
— Sim, mãe, no ano que vem. — respondi, aumentando a sua empolgação e a do meu pai.
— Por acaso tem alguma candidata, jacu? — minha irmã perguntou, com um ar cínico, e notei que minha tia me encarava séria — Para quem era aquela carta que escreveu mais cedo? — questionou, o que me incomodou, por alguns segundos, mas entendi que ela estava facilitando para contar sobre a Sâmia, até porque minha irmã afirmou saber, em particular, sobre o nosso casamento secreto.
— Para a Sâmia. — disse, e alguns demonstraram espanto — Queria saber como ela estava.
— Anda mandando cartas desde quando?
— Tem alguns dias, mãe. Sempre fomos amigos, qual o problema?
— Nenhum, se realmente gosta dela. — respondeu, tranquila, apesar do seu rosto não expressar contentamento — Será que ela está pronta para um novo relacionamento? Fora que não sabe nada sobre a nossa cultura.
— Tenho certeza que o Samir vai ensinar tudo, não é filho? — meu pai interveio, com um sorriso simpático — E já vi como ela te olha. Não há dúvidas que essa moça gosta de você. Se ela é mulher com quem gostaria de se casar, futuramente, tem a minha benção. — garantiu, o que me tocou, e sorri largamente — Só não seja apressado, respeite o tempo dela.
— Eu gosto muito dela, pai. — confessei, aliviado por fazer isso em voz alta, e ele retribuiu acariciando o meu braço.
— Olha só, o jacu está apaixonado! — minha irmã brincou — Que bonitinho, os seus olhinhos brilhando! Uai, Samir, faz muito tempo que eu não te via desse jeito. Também quero ver vocês dois felizes. — acrescentou, sorrindo, com uma piscadinha, e passei o olho pela tia Jamile, que parecia explodir a qualquer momento.
— Muito conveniente casar com ela, agora que está bem rica! — a chata soltou, aborrecida, me irritando — A Sâmia é a sua aposentadoria, Samir?
— Não a quero por causa do dinheiro, tia, mas sim porque a amo. — falei, tentando ser mais calmo o possível.
— Ah, então a conhece bastante para ter essa certeza! Me responde, Samir: quando soube disso? Foi ao se deitar com ela, com o marido ainda vivo? — continuou, mesmo com a minha mãe insistindo para parar — O homem mal morreu e já quer ocupar o lugar dele na cama! Quem garante que você já não se casou com ela e está mentindo esse tempo todo? — questionou, irritada, e eu ri, instigando-a ainda mais.
— Não acha que eu estaria com a Sâmia, nesse exato momento, se fôssemos casados? Pensa que estaria aqui te ouvindo me acusar dessa forma? Porque não pode confiar em mim? Está agindo como todos os outros, me julgando por causa da condição social! — reclamei, em tom chateado, levantando da cadeira.
— DEIXA DE SER CÍNICO, UMA VEZ NA SUA VIDA, SEU MISERÁVEL! — berrou, pondo-se de pé — Sabiam que ele terminou com a Layla porque estava tendo um caso com a Sâmia? — contou, e minha mãe ficou branca, assim como o meu cunhado — A Layla me contou chorando que ouviu a Zaina brigando contigo porque te viu com a outra no dia do casamento dela! Ainda rasgou o vestido de noiva! — falou, e minha irmã me encarou, com um fio de desespero, e tratei de salvá-la.
— Sua velha mentirosa! Deixa a minha irmã fora disso! Acha que eu ficaria com a esposa de outro no dia do casamento deles? Óbvio que ela te contaria essas coisas, só para me prejudicar!
— Ouvi vocês brigando na minha casa! Sei muito bem o que disseram!
— Nós nunca brigamos por causa disso! Ela ficou triste por causa do término e que tinha medo da reação dos pais se soubessem que não era mais virgem, graças a um ex namorado chamado Kaysar.
— O Kaysar não teve nada a ver com isso! Você que transou com a Layla e causou isso tudo! Depois que ela não era mais virgem, perdeu o interesse! Aí seduziu essa moça e vai se casar com ela só por causa do dinheiro! — prosseguiu, e reparei na minha mãe paralisada com o choque — Já estava mais do que na hora de todo mundo saber! Com certeza, foi por isso que o Daniel atirou nela e colocou fogo na mansão! Por culpa sua!

  A lembrança do tiro ainda me fazia chorar, mesmo com a Sâmia a salvo. Senti uma lágrima descer, então a usei ao meu favor.

— Porque ainda fala disso, tia? Já disse que esse tiro não foi minha culpa! O Daniel era insano! Pessoas do círculo dele confirmaram isso! Eu não dormi com a Sâmia no dia do casamento dela e nem fiquei com a Layla. — menti, me defendendo, com a voz trêmula — A Zaina não tem nada a ver com isso. Querem saber o porque terminei? No dia em que a tia Jamile se mudou, eu ajudei a colocar as malas no quarto dela. — comecei, correndo o olhar neles, e a expressão de raiva da mulher deu lugar ao medo — Ela começou a falar que eu precisava me soltar mais, que a Layla era uma jovem intensa e... Tentou me convencer a falar que estava doente e ficaria aqui, perto da minha namorada, e que guardaria segredo, caso acontecesse algo entre mim e ela. Também que me ensinaria algumas coisas para conquistá-la. Então me puxou para sentar colchão e...
— SAMIR, CHEGA! — ordenou, nervosa.
— O que ela fez, jacu? — Zaina insistiu, temerosa, acariciando a barriga — Tia, o que você fez?
— Ela me beijou. — soltei, e minha irmã agarrou o braço do marido igualmente chocado, e meu pai saltou da cadeira, ao contrário da mãe, que nem se moveu — Falou que sempre gostou de mim, e que não tínhamos nenhum elo de sangue, então não seria errado. Eu não tive reação, na hora, mas falei que gostava da Layla e não podia fazer aquilo e...
— CHEGA, SAMIR, CHEGA!
— Que estávamos nos envolvendo. Aquilo me deixou... — hesitei, dando voltas ao meu redor, fingindo abalo — Não sabia o que estava sentindo, mas não podia enganar a Layla daquela forma, por isso dei uma desculpa qualquer para romper com ela. Eu contei para a senhora, um pouco antes, que estava preocupado em não ter jeito com ela, já que não namorava fazia um tempo. Não achei que fosse me fazer uma coisa dessas! Deve ser essa a razão da sua implicância constante comigo, algo que eu nunca entendi! Por isso, insistiu tanto para me casar com ela? Para eu salvar a pele dela?
— JÁ BASTA, VOCÊS DOIS! — minha mãe finalmente se manifestou, levantando, indignada — Mas o que houve para se acusarem dessa forma? Do que ele está falando, Jamile? — indagou, deixando a irmã sem reação, por alguns segundos.
— Espera, Soraya, vai dar ouvidos à ele?
— Bem, vocês dois nunca se deram bem, fora que o término com a Layla foi esquisito! Zaina, você viu o seu irmão com essa moça?
— Claro que não, mãe! — respondeu, rápida, para a minha surpresa — Eu não briguei com o Samir, em ocasião nenhuma. Eu soube pela própria Sâmia que o vestido descosturou, e não que alguém tenha rasgado. — prosseguiu, lançando um olhar breve para a minha tia, que retribuiu incrédula, depois para mim, que encarava o chão, vez por outra.
— Tem alguém que possa negar o que o Samir disse, Jamile? Porque o meu filho acusar a minha irmã de assédio é demais para mim! Isso é verdade?
— Pelo amor de Deus, não acredite nele! — implorou, dando dois passos para trás — EU SOU SUA IRMÃ! Não pode...
— Você beijou o meu filho ou não? Ah, Senhor, é verdade? — insistiu, ao ver as lágrimas da outra como resposta — Jamile, como pôde? — questionou, indo até ela, que abaixou o olhar, enquanto a Zaina me envolvia num abraço apertado — Olha para mim! — exigiu, e a outra obedeceu, com linhas negras na bochecha — O que deu em você para fazer uma atrocidade dessas?
— Me escute, Soraya, não foi como ele disse. Não o obriguei a nada, o Samir me beijou porque quis! Foi uma coisa que aconteceu sem querer, e nós dois estávamos carentes!
— Eu nunca ia te querer, pelo amor de Deus! Você é minha tia! — bradei, enojado.
— Você foi a primeira a segurar o Samir, quando dei à luz, Jamile! ELE TEM IDADE PARA SER SEU FILHO! ISSO É NOJENTO!
— Eu não sou tia de sangue dele, não houve nada impróprio!
— Então sabia sobre a Layla? Ajudou a enganar meu filho?
— Ele precisava de uma esposa, e foi o que fiz, arranjei uma boa candidata! Finalmente, iam parar de achar que o seu filho era homossexual! Seria uma vergonha na nossa família alguém nessas condições!
— Vergonha é a minha própria irmã cobiçando o meu filho!
— O seu filho não é nenhum inocente! Foi ele que jogou o Marcos da torre do sino, em Minas, e o estrangulou até à morte! Ainda por cima, guardou a chave da torre como uma lembrancinha! O seu filho é um assassino! Sabe Deus mais quantas pessoas ele matou!
— CHEGA! Não quero ouvir mais nada!  Por favor, saia da minha casa! — ordenou, apontando para a porta.
— Não pode acreditar nele, Soraya!
— Eu não posso acreditar em você! Vá agora!

  Minha tia olhou para todos, em busca de defesa, inclusive para mim, que a encarei friamente, ainda agarrado à minha irmã. Por fim, abaixou o olhar e se foi, envergonhada. Não sei o que a levou a pensar que não contaria o que houve. Assim como a minha esposa, eu cumpria as minhas promessas, e fiz valer naquela noite.
  Minha mãe foi para o quarto chorando, amparada pelo meu pai. Tirei a mesa em silêncio, com a minha irmã e o meu cunhado, tentando sustentar uma expressão triste, quando na verdade, vibrava por dentro, louco para ligar para a Sâmia e contar sobre o buraco em que minha tia terrível caiu, como todos os que atravessaram o nosso caminho.
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Hasan    Where stories live. Discover now