𝟏𝟓. 𝑼𝒎𝒂 𝒎𝒐𝒄̧𝒂 𝒄𝒐𝒎𝒐 𝒆𝒍𝒂.

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                                Samir

  Segui Sâmia até o estábulo, onde o seu cavalo aguardava na baia 9. Era um animal magnífico, branco e caramelo, com tranças na crina. Ela pegou uma escova e começou a correr nele, carinhosamente, como aparentemente costumava fazer. Notei que tinha uma vassoura do lado de fora, e me questionei se a jovem conseguiria me matar com aquilo. Deixa de paranóia, jacu, repreendi-me mentalmente.

— Quando você ganhou esse cavalo? — perguntei, puxando assunto, para disfarçar o meu desconforto por estar sozinho com ela, que evitava me olhar nos olhos.
— Aos 12 anos. Não sei o que eu faria sem ele. Acho que você vai poder escolher qualquer cavalo para montar, quando sairmos por aí.
— Sâmia, confessa: ontem, você estava mentindo, não estava? — perguntei, parando ao seu lado — Não tem como aquilo tudo ser verdade.
— Porque eu mentiria sobre isso? — rebateu, me olhando fundo, sombria como antes, parando a escovação — É mais fácil dizer que não fiz nada. E você, hein? É todo tranquilo, simpático, bem gentil, descontraído e confiável. Até o seu tom de voz é assim. Parece muito com o meu irmão mais velho. A imagem de um homem violento, estrangulando alguém até a morte, não condiz com isso. Já falei que não conseguiu me assustar.
Uai, tem certeza que não? Sempre ficam com medo de mim.
— Eu fiquei em choque, mas não com medo. Então, para de tentar me assustar.
— Não estou tentando. Falei a verdade.
— Assim como eu.
— Olha, — comecei, encostando-a de súbito na parede da baia, não vendo medo em seus olhos, apenas algo estranho — sei bem que não me quer aqui, então se acha que dizer que fez coisas horríveis com alguém, para me fazer pedir demissão, está enganada. — garanti, encarando-a bem sério.
— Já me falou isso, ontem. E se pedir, vai dizer o que? "Ah, doutor Alfredo, vou embora porque a sua filha envenenou a namorada do seu filho"? — provocou, sussurrando, com um fio de deboche, que me irritou — Ele não vai acreditar. Ninguém acreditaria. Te falei e você não acreditou! Nunca me acham capaz de nada, principalmente disso. — continuou, com uma nota de frustração na voz.
— Claro que não. Nenhum pai aceitaria a linda filha em casa depois de saber que ela é um monstro cruel, cheio de ódio e disposta a matar para conseguir o que quer. — afirmei, sussurrando, imitando-a — Nem venha me dizer que se livrou da Melissa pelo bem do seu irmão.
— Foi por ele, sim!
— Mentirosa! Você apenas a odiava e a puniu por duvidar da sua capacidade.
— Nunca puniu ninguém por isso?
— Claro que sim. — afirmei, com um episódio da adolescência na mente — Meu Deus, você nem viveu a metade do que vivi, como pode sentir tanto ódio?
— O ódio não tem idade, assim como o bom assassino não tem um rosto específico.
— Não sente nenhuma culpa pelo que fez?
— Foi um castigo merecido. Não devo negar para mim o que quero. Que mal tem nisso?
— Sua maluca egoísta! — acusei, encaixando as mãos no pescoço dela, e consegui sentir a sua pulsação, fazendo-a fechar os olhos devagar, por alguns segundos, e um sorriso moldou os seus lábios por um segundo, o que não entendi — Porque faz isso?
— Porque eu posso e sou perfeitamente capaz! Não se atreva a me julgar! — sibilou, me olhando fundo, e parecia que eu estava me vendo no espelho — E também queria! Me cansei de duvidarem de mim! E você, Samir? — rebateu, agarrando a lapela do meu paletó, e senti o calor aumentando — Porque fez tudo aquilo?
— Pela mesma razão: porque eu quis. — confessei, e senti o seu olhar me analisando, outra vez — Não pense que esses olhinhos fofinhos vão me enganar.
— Acha os meus olhos fofos? — perguntou, em tom provocativo.
— Não foi o que eu quis dizer.
— Certo, então. Que bom que tudo ficou claro. Ainda dá tempo de me estrangular.
— Eu não quero te estrangular, mas quis fazer isso com as outras que vigiei!
— Então, me solta. — disse, calma e me dei conta do que tinha feito, outra vez, sentindo o rosto esquentar — Me acha tão insuportável a ponto de me estrangular? — questionou, com um ar sínico.
— Que?
— Está ou não tentando fazer isso?
— Eu não tento, Sâmia. — disse, me afastando.
— Supimpa! Fique tranquilo, não vou falar nada com ninguém. Não me levariam a sério se eu contasse que você é um criminoso. — disse, baixo.
— Sâmia, não precisa ficar com medo, até porque as coisas que eu fiz não te afetam em nada. Nunca vou te fazer mal. — garanti, e o olhar dela suavizou — Não deixa isso te impedir de confiar em mim. Prometi para o seu pai, e prometo a você que vou fazer o que for para te manter segura. Isso não muda por causa do que fez ou pense em fazer.
— Tudo bem. — falou, após um suspiro — Não quis dar a entender que estava te julgando, só não esperava. Você não parece alguém que já fez isso. E não entendo o porquê delas não irem com a sua cara. Deve ser porque é sério, na maior parte do tempo.
— É, todo mundo diz isso. É o hábito da profissão. — falei, rindo, sentindo a tensão se dissipar — Deve ser o motivo pelo qual só me contratavam para vigiar as filhas. Sabiam que eu não faria nada impróprio.
— Acho que os meus pais pensam o mesmo. —  afirmou, num tom debochado; ela era a mesma de ontem, com um olhar frio, ao descrever a morte cruel da sua vítima?, me perguntei.
— Quem é você, Sâmia? — perguntei, tranquilo, e ela sorriu, largamente, mordendo o lábio inferior.
— Talvez o mesmo que você. A minha pergunta é: isso seria ruim?
— Tem suas vantagens. Alguns talentos são muito úteis. Você vai descobrir.
— Estou ansiosa. — falou, aprumando o corpo, em tom animado — Olha, tem certeza que não estava tentando me estrangular?
— Óbvio que sim, porque?
— Você ficou vermelho, do nada. — soltou, rindo baixo, voltando a escovar o cavalo.
— Eu acho que você se enganou, uai. — desconversei, disfarçando o constrangimento.
— Tudo bem, se prefere fingir que não, não julgo. Eu preciso ir lá no meu quarto buscar o meu martelo. O jogo vai começar lá pelas 9. Vai ser uma partida bem curtinha, ainda bem. Quer me esperar aqui? Vou correndo.
— Preciso te seguir aonde for, são ordens do seu pai. Minha função é te proteger.
— Eu sei, mas o único lugar que não pode entrar é no meu quarto. Não vou fugir, não se preocupe. Juro que volto logo.

  Concordei e ela saiu correndo. Fiquei ali, acariciando o cavalo dela, bem manso. Até que ela é simpática, não é tão ruim assim, falei para o animal, que apenas relinchou, em resposta. Ouvi duas vozes masculinas se aproximando e olhei discretamente, vendo o marmota do Eduardo, conversando com outro homem, ambos vestidos para o jogo de pólo, mas com camisas verdes, parados em frente às primeiras baias.

 
— Mas as coisas não deram certo porque, Edu? — o homem perguntou.
— Ah, a Sâmia começou a falar de matar o criminoso, se for necessário, e que alguns precisam ser removidos... Enfim, uma porção de coisas esquisitas. — ele respondeu, em tom de repulsa.
— Já ouvi falar que ela soltava umas coisas assim.
— Bem, comigo ontem foi a primeira vez, e olha que já conversamos por um tempo! É uma pena, ela é muito legal e tão bonita! É um desperdício, só pelo fato de pensar dessa forma. Mas acho que a Sâmia exagerou na bebida.
— Por essa razão que sempre achei que moças jovens não deviam beber! — afirmou, caindo no riso, junto com o outro.

 
  Lembrei do choro desesperado da Sâmia, e do quanto ele a magoou. Desgraçado, refleti, enraivecido. Vou te ensinar a nunca mais tratá-la desse jeito.  Logo, passaram em frente a baia 9, mas não me notaram. Porque prestariam atenção num funcionário qualquer? O almofadinha soltou que nunca selava o próprio cavalo, mas que conseguiu fazer o trabalho, e poderia jogar. Tem o animal, mas não fazia idéia de como cuidar dele! Que besta!
  Era mesmo um inútil! E o meu puro sangue está amando a baia 11, a voz dele ecoou e, minutos depois, ambos partiram. Saí de onde estava e fui até o seu cavalo, soltando um pouco a fivela da barrigueira. Quando começasse a correr, teria uma bela surpresa. Vai aprender do jeito difícil. Fui rápido, voltei para a baia 9 e Sâmia apareceu um tempo depois, carregando o martelo de madeira com um longo cabo, retornando a escovação.

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Hasan    Where stories live. Discover now