𝟑𝟒. 𝑪𝒐𝒏𝒇𝒊𝒔𝒔𝒂̃𝒐.

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                                Sâmia

Quarta-feira, 1º de maio de 1957

  Peguei no meu cofre, dentro do armário, um dos potinhos de vidro com folhas secas de Cicuta, que deixou para sempre me lembrar dela, e separei. Ela nunca me autorizou a cultivar, porém não falou nada sobre presentear alguém com isso.
  Tinha anos que eu não usava essa erva. Passei um pouco mais do batom rosa e desci, pouco antes de tomar café, às 06h20min. Eu poderia dar para o Samir qualquer uma das ervas venenosas que ficavam na parte trancada da estufa, enquanto o restante dela se resumia a ervas comuns e verduras. Mas não, precisava fazer isso com alguma coisa especial.
   Decidi o presente, ontem de noite, depois de fazer um pudim de coco com calda de morango. Prometi que faria um para o Samir e cumpri a minha promessa. Quis retribuir o que fez por mim, no jogo de Polo. Tive que fazer depois de todos irem dormir, para impedir o Miguel de comê-lo. Foi complicado mas deu certo.
  Sim, eu mal conhecia o Samir e estava apaixonada por ele. Mas o que é que eu sabia dele? Sobre os pais, quase nada, apenas conheci a irmã, Zaina. Ela era muito legal, e dava para ver que eram ligados. Eu via que ele se dava muito bem com os empregados; era muito simpático, tinha um ar tranquilo, e os meus irmãos menores gostavam de ficar perto dele. Todos gostavam, inclusive eu.
   É claro, esse comportamento tirava qualquer preocupação que meus pais tivessem sobre um possível flerte comigo, já que Samir era muito profissional e com certeza o viam como um segundo irmão mais velho meu. Fora que o meu comportamento inocente ajudava na ilusão. Tudo o que eu sentia quando o via era vontade de ficar pelada.
  Meu guarda-costas tinha muito tato ao falar. Conseguiu fugir da investida de Matilde com todo jeito possível. A mulher me contou ontem, pela manhã, que ele afirmou que ela era digna e um verdadeiro exemplo de dedicação e profissionalismo aqui em casa, e tinha-lhe grande respeito.
  É claro, ela disse sem a menor empolgação. Matilde tinha grandes qualidades e muita beleza, porém não era mais jovem. Samir tinha idade para ser seu filho, e com certeza isso não o atraiu.
  Assim que ele pisou aqui, na segunda, senti uma onda de calor enorme, principalmente quando me olhou nos olhos, na mesa do café. Graças aos preparativos do noivado, passei esse dia e o seguinte arrumando tudo com as outras mulheres, sem chance de ficar a sós com ele.
   Lamentei, claro, já que o beijo de sábado não deixou os meus pensamentos e nem os dele, pelo visto, graças aos breves olhares que me lançava, vez por outra.
  De manhã, desci pelo corredor secundário, seguindo para a biblioteca, e deixei o vidrinho no cesto aonde estavam as fitas que usei para decorar os potinhos com doce de banana. Dei uma última olhada no espelho do aparador no corredor e ajeitei a faixa branca na cabeça.
  Estava muito bem, e o meu vestido cor de areia com um cinto azul de bolinhas me deixou supimpa. Segui até a cozinha, na esperança de encontrá-lo no caminho. Sem sucesso.
  Ele já estava sentado, comendo, e me cumprimentou rapidamente, fingindo indiferença, e retribui, igualmente. A Madi e a Matilde estavam circulando, terminando o preparo dos quitutes que seriam servidos pela noite, no noivado.
  Logo, o meu irmão chegou e Samir se levantou, dando-lhe um abraço apertado, parabenizando-o pelo noivado. Porém, aproveitou que Miguel estava de costas para mim e me olhou com intensidade, o que fez minha boca secar. Então, o soltou e voltou à mesa, como se nada houvesse.
  Meu irmão se sentou para comer e fui até a geladeira; peguei duas fatias do pudim com a calda de morango, levando até eles, alegando que tinha prometido fazer e fiz. Miguel disse que não se lembrava disso, mas agradeceu, animado.
  Samir me viu com uma expressão contente, com um brilho nos olhos e um sorriso discreto, me fazendo acreditar que se lembrou que lhe prometi um pudim. Provou um pedaço com calma, deslizando a colher delicadamente entre os lábios avermelhados, e me lembrei que eles tinham sabor de amora, quando me beijou.

— Maninha, isso está incrível!
— Obrigada, e não coma mais, por favor. Eu coloquei um bilhete nele ontem, para ninguém mexer, e ainda está valendo.
— Certo, sua possessiva. Pena que o meu sogro odeia pudim. Na verdade, ele é um pouco chato, detesta tudo, incluindo eu. — afirmou, rindo.
— Bem, Miguel, vamos dar um chá para ele, talvez resolva. — Samir respondeu.

  Meu irmão fez uma cara confusa e eu explodi numa risada alta, fazendo os outros nos encararem. Samir lançou-me um olhar satisfeito e bebericou o café, disfarçando um sorriso. Recuperei o fôlego, tomando um gole de água, os deixei comendo e saí dali, silenciosa, pelo corredor principal. Segundos depois, ele me alcançou.
 
— Sâmia, tem uma coisa que eu queria te dar. — falou, tirando do bolso interno do paletó escuro uma pequena faca embainhada com um cabo branco gravado com pequenas flores — Isso é para o caso de eu não estar perto.
— Poxa, obrigada. É muito bonita. — falei, pegando o objeto da mão dele, sem graça — É que... nem sei aonde usar.
— Vai saber a hora, e quando precisar, use sem nenhum remorso. Sei que não não vai ser difícil para você. — acrescentou, com um sorriso largo, e o imitei, com o coração alegre — Talvez tenha que se livrar de alguém com um método mais agressivo.
— Pode deixar, eu vou usar e guardar bem. Falando em método, tem algo que eu preciso te dar. Está aqui.

  Caminhamos até a biblioteca e peguei o presente, fazendo-o rir. Só estranhei o fato dele ter fechado a porta, depois de entrarmos. Gargalhou ao segurar nas mãos o vidrinho com as folhas.

— Um chá? Jura? — perguntou, irônico.
— São folhas de Cicuta. Separei para você, hoje cedo. Pode ser que tenha que usar um caminho mais longo e menos sanguinário para se livrar de alguém. Mas tome cuidado, isso é muito perigoso. Sempre proteja as mãos, ao manusear.
— Entendi. Obrigada. — agradeceu, com um sorriso constrangido — Por acaso, o pudim era para mim? — perguntou, e me perdi nos seus olhos.
— Era sim. Prometi fazer um, no jogo de Polo. Você gostou? — perguntei, me sentindo nervosa, não sei porque.
— Eu amei. Estava incrível! — falou, e eu sorri, encabulada — Não pensei que estivesse falando sério.
— Samir, sempre se lembre de uma coisa sobre mim: se eu prometo, sempre cumpro, mesmo que o faça na base do ódio, mas faço.
— Então, o meu pudim foi na base do ódio? — perguntou, bem humorado — Porque estava uma delícia. — contou, se aproximando um passo, de mim, e o meu calor aumentou.
— Não, na verdade eu fiz de coração. Pode não parecer, mas... — expus, encarando as minhas mãos, caminhando em direção à poltrona, ao lado da mesa com a cesta de fitas, aonde sentei, e Samir me seguiu, sentando em outra, de frente — aquilo significou muito para mim. Obrigada por ter me defendido.
— De nada. Eu sempre vou fazer tudo para te manter segura, Sâmia. — garantiu, se inclinando e segurando as minhas mãos — Você sente alguma coisa por mim?
— Claro que sim, Samir, mas não posso fazer nada que te prejudique. — falei, com o coração na boca — Você é um homem surpreendente! É capaz de fazer coisas que ninguém mais consegue! Confiei em você desde o início, sabia? Odiaria fazer qualquer coisa que me tirasse do seu lado. Não posso te atrapalhar.
— Mas nunca fez isso, Sâmia! Não fique se punindo por algo que nunca aconteceu. A verdade é que é impossível, em tantos anos, ninguém ter se apaixonado por você. — afirmou, correndo a mão direita no meu rosto, com a voz cheia de certeza.
— Mas se apaixonaram, porque nunca disseram? — perguntei, aborrecida, me pondo de pé, caminhando até a porta, com ele me seguindo — Passei esses anos todos numa busca fracassada! Provavelmente, é porque não sou tão interessante!
— Você é perfeita, uai! — garantiu, se aproximando tanto de mim que acabei encostando na porta — É fácil se apaixonar vendo só o lado bom, mas tive um vislumbre do seu pior lado, Sâmia, e gostei muito. Você é tão perversa quanto eu consigo ser, faz da morte um meio para um fim, e usa uma máscara de bondade que engana qualquer um.
— Você também é assim, Samir. Consegue passar ileso sem a menor dificuldade. É tão gentil que desvia a atenção de todo mundo. Cuida de mim como se eu fosse uma irmãzinha querida. — falei, e um sorriso rápido se desenhou nos seus lábios — Ninguém aqui imagina o que realmente é. — afirmei, num volume baixo.
— É o mesmo, no seu caso. Só não sei como isso nunca nos fez ficar com medo um do outro, já que sabemos exatamente do que somos capazes.
— Quem garante que não vamos tentar nos matar, um dia? — sugeri, e ele esboçou um breve sorriso de canto.
— Só sei, Sâmia, que desde aquela conversa na biblioteca, no primeiro dia, me esforço ao máximo para disfarçar que penso quase o tempo todo, sempre que estou ao seu lado e te olho nos olhos, em tirar toda a sua roupa. — confessou, me olhando fundo, e senti os meus joelhos trêmulos — Eu vou fingir para os outros, mas não vou fingir para você.

   Finalmente, prendeu-me com um beijo feroz e senti a sua língua tocando a minha. Agarrei a sua roupa como se minha vida dependesse disso, com as suas mãos correndo pela minha pele, carinhosas e sedentas, essas mesmas mãos que fizeram atrocidades. Fiquei tão inebriada com o cheiro da sua pele, tão quente, que nem percebi que tinha agarrado a fivela do seu cinto.

— Calma, calma. — sussurrou, afastando o rosto e o encarei, sem fôlego.
— Me desculpa, eu nem percebi que...
— Tudo bem, não precisa se desculpar. — falou, e senti o desejo no seu olhar.
— Eu devia ter feito isso naquele dia. Queria que tivesse continuado. — confessei, queimando por dentro — Porque negar o que quer para si? — indaguei, e a expressão dele não mudou.
— Não negue mais, Sâmia. 
— Não vou, nunca mais. Só que acho melhor nós...
— Sim, eu vou destrancar a porta. — avisou, caminhando até a fechadura.
— Espera, trancou? Quando?
— Assim que entramos. — explicou, com um ar malicioso, me fazendo sorrir — Por precaução. Eu preciso tomar uma água. Você vai ficar bem aqui? Demoro nada.
— Tudo bem, vou terminar esses potinhos. Se quiser comer um sanduíche também, aproveite. — disse, retornando à poltrona.
— Certo. Eu não demoro. — garantiu, com uma piscadinha, e senti como se o sol tivesse tocado o meu rosto.
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Hasan    Where stories live. Discover now