𝟏𝟐. 𝑬𝒍𝒆.

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                                Sâmia

 

— Pronto. — falou, ao secar o meu rosto com as mãos e a temperatura da sua pele reconfortou-me, por alguns segundos, e notei o quão fixo o seu olhar estava em mim.
— Espera! — me levantei, de súbito — Você concorda com isso?
— Concordo. — respondeu, também se pondo de pé.
— Não, não pode! Ninguém concordaria! Tudo bem, Samir, eu sei que só está sendo gentil comigo, mas não precisa fingir.
— Eu não estou fingindo! E essa dose que falou seria de quê, para matar em 7 minutos?
— Não estou te entendendo. — menti.
— Entendeu, sim. Me responde uma coisa: o que você deu para o Felipe?
— Quem é esse?
— O outro candidato.

  Engoli em seco. Porque ele queria saber, pombas? Senti a vontade de chorar passar na hora e o olhei bem fundo.

— Porque quer saber? Os chás estavam na mesa.
— Você voltou no armário e buscou um terceiro. Eu vi quando levou de volta. Até contou o tempo nos dedos para deixar o infusor na água. O que deu para ele?
— Você se enganou! — falei, irritada, me aproximando dele e olhando-o fundo.
— Eu não costumo me enganar, Sâmia. Para de me enrolar e me fala o que deu para ele. — mandou, se aproximando um passo — Posso até dizer que era o quarto vidro na segunda prateleira, naquele armário que só você tem a chave.
— Não pode me dar ordens! Quem pensa que é? Ninguém vai acreditar em você, Samir, e sabe porque? Porque não acham que sou capaz de qualquer maldade. Olha só para mim! Sou a filhinha frágil e ingênua, tão boazinha! A princesinha do papai! — falei, com desdém — Eu nunca aborreceria o meu pai, tentando impedir a sua contratação, porque aprendi ao longo do tempo que, às vezes, é melhor bancar a filha obediente. Eu odiei a ideia de ter um guarda-costas, mas resolvi aceitar, porque o deixaria mais tranquilo, menos despreocupado, e uma pessoa despreocupada...
— Presta menos atenção. — ele me interrompeu, completando o meu raciocínio.
— Porque você voltou? — perguntei, incomodada — Podia ter desistido!
— Porque nenhuma das jovens que vigiei tentou matar outra pessoa na minha frente! O seu pai queria alguém atento e conseguiu. Fora que você me ajudou, o que me deixou confuso. Bastava ficar na sua, porque eu provavelmente não melhoraria e perderia o dia de trabalho, talvez até mesmo a vaga.
— Eu só ajudei, não significou nada!
— Bem, se tinha intenção de me espantar, não deu certo. E não tinha porque desistir, já que não fui envenenado por você, só o outro.
— Como tem certeza que eu envenenei o calhorda?
— Pela sua atitude. Não ficou nem um pouco preocupada, apenas observou, meio que estudando os sintomas dele. Óbvio que eu sei que seu pai não vai acreditar num estranho falando mau da filha boazinha dele. Mas me fala: quantas pessoas você envenenou até conseguir a dose certa para causar cada nível de reação? — questionou, chegando mais perto, e consegui sentir o seu perfume amadeirado agradável — Porque não acho que você queria matá-lo. Seria burrice, com tanta gente perto. E isso justamente depois da grosseria que ele te fez! Concordo que foi um castigo merecido. Foi o que você fez com a antiga namorada do seu irmão? 

  Ah, porque ele deu ouvidos à Leonora? Devia ter ignorado essa história! Tem anos e não faz mais diferença, já que o meu irmão vai se casar com uma moça maravilhosa.

— Como ela acabou morta? — continuou — Também te tratou mau?
— A Melissa tratava todo mundo assim! Só quis ser amiga dela! — gesticulei — Poxa, o Miguel estava tão feliz com a namorada, e eu por ele, sabe? Eu era uma criança! Teve uma vez que ela estava fazendo biscoitos para o meu irmão e ofereci a minha ajuda, falando que queria que fôssemos grandes amigas, mas a infeliz só virou para mim e disse que não queria saber de uma pirralha incomodando-a. — contei, secando uma lágrima — Fora que se achava muito entendida de botânica e saía pegando todo tipo de planta que encontrava, chegava até a comer algumas flores, alegando que viu em algum livro que podia fazer isso. Volte e meia passava mau. A avó biruta dela encomendou mudas de Cicuta e cultivou na estufa. Nem a minha avó fez isso, porque sabia o quanto era perigosa! O engraçado é que nasceram flores pequenas, aparentemente inofensivas, até que bonitinhas.
— Você já sabia o que cada erva fazia?
— Desde quando aprendi a ler. Fui ensinada com precisão sobre o cultivo e o manuseio. Teve uma vez que passei o final de semana na casa dela. Melissa tentou pegar um ramo da Cicuta para fazer chá e eu falei que era super venenosa, e que queria ajudá-la a achar uma erva boa, mas a tapada só gritou comigo e me mandou sumir de perto dela. E ainda por cima, falou que minha avó, justamente quem me ensinou tudo, era louca e morreria logo. Na hora, alguém a chamou e acabou não pegando. Fiquei um bom tempo lá dentro, chorando, me sentindo um lixo. Aí eu pensei: "ela precisa aprender que aquela florzinha linda faz mau". Me esforcei para gostar de mim e não deu em nada!
— Acharam-a morta no dia seguinte.
 — Claro que acharam. Aquilo era venenoso demais. Pobrezinha! — disse, debochando — Melissa sempre tomava chá no quarto, antes de dormir. Só que, nessa noite, ela se descuidou, deixou a xícara sozinha e porta aberta. Quando o dia amanheceu, estava caída sobre a cama, com o rosto de quem paralisou e sufocou devagar, depois que eu esperei o dia todo e troquei o infusor de chá com camomila dentro por um com as folhas da Cicuta, colhidas com cuidado. — expliquei, com os olhos fixos em Samir.
— Você assistiu?
— Sim, bem confortável, em pé, de frente para ela. — falei, indiferente, e ele pareceu pensar em algo — Me escondi no banheiro e saí para ver, assim que a ouvi sufocar. E levou exatos 7 minutos para aquela idiota morrer.
— Então, você sabe qual é a sensação. — falou; a expressão tranquila tinha desaparecido do seu rosto, e o seu olhar estava um pouco vidrado.
— Sensação de que?
— Da frustração que nasce de ultrapassar os limites, só para se ter o que mais necessita, e não dar em nada. De olhar nos olhos da pessoa e saber que é capaz de qualquer coisa, seja ferir ou tirar a vida dela. — falou, e senti aquelas palavras ecoando dentro de mim.
— Já chega, não vou ficar aqui te dando ouvidos! — decidi, fugindo até a porta, mas Samir me alcançou, prendendo-me contra ela — Se afasta!
— Não vou! E o fato dessa pessoa não estar mais respirando graças a você chega a te dar um sentimento de poder imenso. Até mesmo o sangue se espalhando pelos degraus, depois de uma queda inocente do alto de uma escada chega a... — prosseguiu, e a frase se perdeu no ar, com ele respirando fundo.
— Ser prazeroso. — completei, sentindo a minha pele esquentar com o olhar surpreso dele — Meu Deus, fez isso com quem?
— Um colega de escola insuportável que tentou fazer da minha vida um inferno. Vivia me diminuindo, dizendo que não era capaz de ter o que queria só por causa da minha descendência. Ele me achou na torre do sino, que estava em manutenção. Felizmente, o da torre ao lado tocou na hora certa, e o joguei do alto da escada. — contou, com um sorriso de satisfação, e a meia luz lhe deu um ar macabro — Foi tão trágico! Pobrezinho! — soltou, cheio de desprezo.
— Mentira!
— Ele caiu como uma pedra e a garota que eu queria mais do que tudo, e por puro azar gostava dele, ainda chorou pelo desgraçado, mesmo sabendo de tudo o que me fez! — confessou, gesticulando, com raiva — É incrivelmente fácil matar uma pessoa! — contou, num tom baixo, com um sorriso — Nunca acharam o culpado, até porque eu era o coitadinho  bonzinho, com comportamento impecável, agredido pelo falecido, um aluno terrível. Quem pensaria mal de mim?
— Como teve coragem? — perguntei, pasma.
— Do mesmo jeito que você, se o que disse for realmente verdade. É incrível como o sangue é denso e levemente brilhante, como o tecido do seu vestido, inclusive. Até o cheiro é marcante. E sai muito rápido do corpo, principalmente se colocar a pessoa de ponta cabeça.
— Isso é mentira, tudo mentira, tudo...
— Mas pode demorar bastante se apenas fizer um corte nos pulsos.

 
  Ele atreveu-se a segurar a minha mão esquerda e correr o dedo indicador esquerdo sobre o meu pulso, o que arrepiou cada ponto do meu corpo. Cheguei a imaginá-lo rasgando a pele da sua vítima com uma faca bem afiada, vendo satisfeito o sangue sair quente.

 — Tanto quanto pode demorar para alguém finalmente perder a consciência depois de ter o pescoço apertado até o limite. — continuou.
— O que quer dizer com isso? Vai me estrangular? Quer mesmo descontar a sua selvageria em mim? — questionei, e notei o seu olhar confuso — Pois então, Samir, desconta! Ninguém vai desconfiar de você, já que a casa está lotada! Anda! — ordenei, pegando uma das suas mãos e encaixando no meu pescoço — Pode apertar, eu sei que ninguém vai sentir a minha falta! — soltei, com as lágrimas voltando — Sou uma aberração mesmo! Aperta, vai!

  Ele continuou me encarando e o senti apertando o meu pescoço levemente, como se quisesse sentir melhor a textura da minha pele. Sua mão estava quente e fechei os olhos, por alguns segundos, com os meus membros perdendo a força para fugir dali e denunciá-lo, enquanto o calor da pele dele penetrava em cada poro meu, provocando uma vontade estranha de beijá-lo.

— Você não fez nada disso com ninguém! — sussurrei, ainda sem acreditar, e ele apenas me encarou com os belos olhos dilatados, ouvindo a sua respiração alta.
— Não faz ideia de quantos pescoços tive o prazer de apertar! — respondeu, aproximando o rosto do meu, lançando a sua respiração contra a minha.
— Jura? Quantos, hein? Quantos você tirou desse mundo?
— O suficiente para saber que você também tirou e não foi uma vez só. — respondeu, olhando os meus lábios — Não tem ideia do que selvageria significa.
— Tenho sim, e cada um a pratica a seu modo. A Melissa é um prova disso e não vou parar nunca!
— É melhor parar e acreditar em mim! — alertou, com suavidade.
— Ah, senão o que?

  Não consegui desviar a atenção dele, nem fugir, e a sua mão quente na minha pele deixava claro que tudo aquilo era real. O meu coração estava disparado e os seus olhos me puxavam cada vez mais. Samir estava falando muito sério, e não tirou o foco dos meus lábios. De repente, senti a sua outra mão tocando as minhas costas, puxando-me contra si.

— Senão te mostro como sei ser selvagem. — respondeu, devagar, e os seus lábios roçaram nos meus, deixando um leve formigamento no local.
— Isso tudo é mentira! — soltei, nervosa, o empurrando para longe de mim — Você só está tentando me assustar! — acusei, apontando-lhe o dedo — Eu não sou como essas riquinhas idiotas que você já vigiou! — afirmei, irritada, encarando-o.
— Espero que não seja, e preste atenção numa coisa: não importa o que diga ou faça: não vou embora dessa casa, ouviu? — garantiu, enérgico, se aproximando de mim, outra vez, e senti uma onda de calor — Vou te levar até o seu quarto. — disse, me dando as costas e saindo dali.

   Peguei os meus sapatos no chão e saí, com ele me seguindo, silencioso. Finalmente, cheguei no cômodo e entrei, girando a chave na fechadura até o fim. Não é verdade, não é verdade, tem um assassino em casa, murmurei, atordoada, dando voltas ao meu redor, correndo as mãos pela cabeça, com a pele formigando demais.
   Arranquei o vestido e corri para o banho, me sentindo quente, ainda desejando beijá-lo. Nem o conheço direito, porque estou me sentindo assim? Sempre odiei o fato de nunca me verem como eu realmente era, contudo, agora que me viram de verdade, me senti péssima. Idiota, como pude me descuidar tanto? Idiota, idiota, idiota!
  Vesti um pijama confortável e caí na cama, agarrada a um travesseiro, ficando assim por muito tempo; tem um assassino em casa, não, não tem coisa nenhuma, ele só quer me assustar! Me levantei, irritada. Quem pensa que é? Mentiroso de uma figa! Calcei as pantufas. Samir não tinha ideia de com quem estava lidando. Lembrei que não tinha comido nada na festa e saí dali com a chave do armário das ervas em mãos. Precisava mudar a Trombeta de Anjo de lugar, por precaução.
   Toda aquela celebração no andar debaixo já tinha acabado há mais de uma hora, e finalmente cheguei na cozinha, com a casa toda silenciosa. O relógio com moldura de madeira entalhada no alto da parede marcava 01h30min, e o cômodo estava iluminado, com o cheiro de algo gostoso e amanteigado no ar.
   Corri até o armário e troquei as ervas de lugar, colocando a hortelã aonde Samir mencionou, para o caso de alguém exigir olhar ali dentro. Pronto. Tranquei, aliviada, porque ninguém teria prova alguma. Algum problema, Sâmia?, a voz atrás perguntou, e virei de súbito, sentindo o mesmo olhar penetrante de mais cedo em mim.

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