04/12/18

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Ainda estamos no restaurante e as coisas estão tranqüilas por aqui apesar de eu ter acordado com um mal estar hoje. Meu peito está dolorido e sinto um desconforto no pescoço, não sei se é por estar dormindo no chão ou ainda é conseqüência do acidente mas isso está me fazendo mal e tirando toda minha vontade de fazer qualquer coisa.

Nos acomodamos pela cozinha e despensa na hora de dormir e como não temos colchonetes para todos arrancamos os estofos das cadeiras para servir de cama, não é algo muito confortável mas ao menos nos mantêm longe do chão gelado a noite. Escolhemos cozinha e despensa pois são áreas que tem portas que nos isolam da parte onde ficam as mesas, essa parte apesar de ser interna é separada do exterior apenas por janelas imensas e portas de vidro e madeira que não agüentariam muito uma investida de mordedores.

O único de nós que tem dormido lá é meu irmão, ele tem ficado de vigia esses dias e normalmente passa as noites atrás do caixa que fica logo a esquerda da porta principal.

Não temos saído muito de dentro do restaurante, esse lugar fica no meio do nada e qualquer coisa além de arvores secas e terra está há pelo menos uns 20 ou 30 minutos de carro. Em todos esses dias que estamos aqui não vimos ninguém passar pela estrada a não ser um ou outro mordedor perdido mas que não veio nos incomodar.

Nosso passatempo por enquanto tem sido um baralho de cartas que Rodrigo encontrou num armário no vestiário perto do banheiro e um velho dominó que meu irmão carregava com ele desde o tempo do exército. Além claro de umas cachaças artesanais que estavam expostas num balcão e prateleiras de madeira em frente ao local onde era servida a comida quando isso aqui ainda funcionava.

O pessoal tem tomado um pouco da cachaça para se distrair, menos as crianças óbvio, e eu pois estou tomando remédio pra evitar que os ferimentos inflamem. Conversei com Alessandra mais um pouco ainda ontem antes de dormir e ela está tendo mesmo um lance com Rodrigo, parece que os dois já flertavam há um tempo mas só se aproximaram de fato depois que nos separamos do resto do grupo.

Já fazia um tempo que eu estava deitada após acordar, o que não é muito do meu feitio, mas já que não me sentia bem aproveitei pra tentar descansar um pouco e escrever mas depois de um tempo acabei sendo abordada por Dayse que bateu à porta antes de entrar e dizer:

- Oi filha.

- Oi Dayse. – respondi com um leve sorriso enquanto me virava de frente pra ela.

- Vim ver como você está. Já é um pouco tarde e você não levantou ainda então estranhei.

- É... Não vou mentir pra você. Eu não me sinto muito bem.

- O que houve? A perna voltou a doer ou sangrar?

- Não. Na verdade estou com um mal estar, não sei se é exatamente por causa dos ferimentos, eu apenas acordei mal hoje.

- Também me senti assim hoje pela manhã. – ela falou se agachando próxima a mim e pondo uma mão sobre minha perna. – Levante e vamos ver a luz do sol e sentir um pouco do vento, talvez isso te ajude.

- Tudo bem eu já vou.

- Certo. Estamos te esperando lá fora. – ela falou enquanto se levantava e fazia um afago em mim.

Eu gosto muito de Dayse. Ela sempre foi ótima pra mim desde a primeira vez que nos falamos e tem sido um anjo comigo desde então e eu sinto tanto por ela ter passado por tudo o que passou, foram perdas de mais para alguém agüentar. E antes dela sair do pequeno cômodo eu a chamei:

- Dayse?

- Sim querida.

- Me desculpe.

- Pelo o quê?

- Eu... Me desculpe por ter largado vocês e ter feito aquilo. Eu fui irresponsável e... – hesitei por um momento enquanto ela dava um breve sorriso se aproximando mais uma vez de mim.

- Não se desculpe. Você fez isso pelo meu filho e eu sou eternamente grata pelo seu amor e zelo por ele.

- Mas não foi o suficiente para salvá-lo – disse enquanto uma lágrima escorria pelo meu rosto.

- Foi Izabel, claro que foi. Eu o via antes que ele te conhecesse e também vi como ele foi feliz depois de te encontrar, você foi a melhor coisa que aconteceu ao meu filho. – ela falou sorrindo com os olhos marejados enquanto limpava minha lágrima com o polegar.

Sorri de volta e ela continuou:

- Ele está com o tio e os dois sempre se safam das piores situações desde antes de tudo isso começar. – ela sorriu e continuou – Uma vez numa viagem a Natal, Júnior era muito novo pra lembrar então não deve ter te contado, sofremos um acidente com um bugre nas dunas. O pai dele estava dirigindo e seguíamos pra uma praia por uma pequena estrada que era margeada por um paredão do lado esquerdo e uma ribanceira à direita e o bugre perdeu o freio. Descemos rápido de mais para Luciano controlar e ele acabou se chocando contra um pedregulho tentando fazer a curva e o bugre começou a tombar em direção a ribanceira. Ficamos todos sem reação vendo o bugre capotar enquanto Edinho, que levava Júnior dormindo no banco de trás, saltou pra fora do carro enquanto bolamos ladeira abaixo...

- AI meu Deus. – a interrompi sem querer.

- Não se preocupe – ela sorriu mais uma vez. – todos ficaram bem apesar dos arranhões e pequenos hematomas, só Edinho e Júnior que não se machucaram. Meu irmão o protegeu tão bem que ele nem chegou a acordar, você acredita?

Nós duas demos risadas da situação e isso me fez sentir melhor.

- Eles são espertos de mais para morrer, não se preocupe.

- São sim. – falei enquanto ela me dava um beijo na testa e saía logo após.

Não sei se acredito nisso Dayse mas talvez pensar assim seja a melhor opção. Essa conversa me animou um pouco e me fez repensar sobre o que estou fazendo, talvez ela esteja certa e mesmo que não esteja acho que entendi sua mensagem. Preciso me preocupar em proteger e manter a salvo o nosso grupo, essa é minha função.

Eu não vou esquecê-lo mas o luto não pode interferir mais nas minhas decisões senão alguém acabará morrendo por isso e aí sim será bem pior.



Diário de Um SobreviventeWhere stories live. Discover now