02/12/2018

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Dirigimos ontem durante o resto da tarde e o inicio da noite. Paramos antes de chegar até o litoral, nem tanto por conta da chegada da noite e sim por causa da chuva forte que castigava a região. A estrada estava horrível e a visibilidade era mínima, preferimos não arriscar nossa integridade em troca dos poucos quilômetros que conseguiríamos percorrer naquela situação.

Entramos numa pequena cidade a beira da estrada e decidimos nos abrigar por aqui até que a chuva cesse ou o dia amanheça. Acabamos por decidir em não irmos muito adentro da cidade e escolhemos um pequeno ponto comercial logo na primeira rua que vimos.

A desculpa que demos uns aos outros para não procurar um local melhor foi a falta de visibilidade por conta da chuva forte, só que na verdade eu sei que cada um de nós tem certo receio em perambular por esta cidade e acabarmos sendo alvos de tiros novamente.

Bom, por bem ou por mal o que ficou decidido foi que dormiríamos realmente aqui, o que acabou na verdade não se mostrando uma das melhores idéias que tivemos.

O local estava cheio de infiltrações e goteiras, o que incomodou bastante, ainda mais durante a madrugada quando a chuva aumentou. Natalia e Edinho dormiram juntos num colchonete inflável que colocaram atrás do balcão, e pelo jeito a noite deles não foi muito ruim já que não os vi reclamar de nada. Já eu e Barbara não tivemos a mesma sorte.

Eu inicialmente ficaria acordado de qualquer forma já que me voluntariei para ficar de vigia. Barbara acabou por se oferecer em me ajudar e disse que cobriria parte da noite para que eu descansasse. Na verdade eu não achava que seria necessária sua ajuda, mas como eu já descobri que contrariá-la nunca é uma decisão inteligente acabei consentindo sem ressalvas.

Ficou combinado que eu vigiaria o resto da noite e o inicio da madrugada e Barbara daria conta do restante da madrugada até o amanhecer, mas as coisas não aconteceram bem assim.

Eu estava sentado em um dos bancos laterais da lanchonete olhando por uma pequena parte da janela que não havia sido obstruída pela barricada, que devia estar lá desde o começo do apocalipse, quando Barbara veio até mim.

- Ainda não é à hora do seu turno. – Avisei quando notei que ela se aproximava.

- Eu sei, só não estou conseguindo dormir. Então acho que vamos ter plantão duplo no seu turno. – Ela disse enquanto sentava no banco ao meu lado.

- Vamos passar a noite acordados juntos pelo jeito.

- É... Pelo jeito sim. – Ela disse com um sorriso enquanto ajeitava os cabelos.

- Conhece algum jogo pra passar o tempo?

- Alguns. E acho que seu tio e Natalia também conhecem. – Ela disse num tom irônico.

Achei engraçado o que ela estava insinuando e dei um sorriso desconcertado mostrando que entendi a malicia dela.

- É. A noite vai ser boa pra alguém. E o seu braço como esta? – Falei mudando totalmente de assunto.

- Está melhorando. Você tem uma mão boa para curativos, Jotah.

- Você que é bem mais resistente que o normal, Barbara. Qualquer um na sua situação teria ficado bem desesperado, você soube lidar bem com esses lances mais tensos.

- É costume na verdade. Pra ser sincera não é a primeira vez que atiram em mim. – Ela disse com um sorriso de canto de boca.

- Sério? Já passou por muitas ciladas desde que tudo começou?

- Antes disso começar na realidade.

- Me fala mais.

- Já te falei que eu trabalhava como repórter externa, não é?

- Sim. – Falei me aconchegando melhor no banco para esperar a história que Barbara contaria.

- Certo. Em um desses trabalhos me mandaram para a Síria. Eu estava fazendo uma reportagem sobre as conseqüências que a guerra tinha gerado. Visitei algumas cidades, cobri o drama dos refugiados. Entrevistei centenas de pessoas, desde soldados até escravas sexuais que haviam sido resgatadas das mãos dos terroristas.

Barbara tinha um olhar fixo na chuva que caía, e observava através da mesma fresta da janela que eu usara até minha atenção ter sido tomada pelo seu rosto e pela forma que as palavras saíam levemente da sua boca.

- Minha última parada foi num acampamento da OMS. Queria pegar alguns relatos da equipe médica que estava por lá e de alguns dos organizadores do local. Fiquei uns três dias para conseguir realizar metade das entrevistas e acabei me solidarizando e ajudando o andamento dos afazeres. Era normal ouvir bombardeios durante o dia e a noite inteira, eles pareciam cair muito perto de nós só que sempre me disseram que era apenas impressão, e que na verdade as bombas nunca chegavam nem perto de acertar o acampamento. Depois de quatro dias eu acostumei com o barulho e nem me incomodava mais, até que um dia... Bom, o barulho chegou perto realmente. – Ela terminou a frase e deu uma leve pausa na história.

Senti o peso da voz dela mudar e ficar mais tensa. Isso me fez erguer a cabeça e focar ainda mais no que ela estava prestes a dizer.

- O que houve? – falei interrompendo seu silêncio.

- Os terroristas atacaram o acampamento. Foi logo antes do amanhecer, um grupo armado entrou no local e disparou em todas as direções, mataram centenas de pessoas indiscriminadamente. Eu nunca vi tantos corpos juntos na vida, Jotah, nem depois dessa maluquice de apocalipse começar. – Uma gota de lágrima rolou pela sua bochecha e ela a secou com a manga do moletom. – Só não me mataram, só não mataram todos que estavam lá porque um helicóptero militar chegou até nós logo depois e atirou contra eles, roubando sua atenção. E esse foi o tempo que tivemos pra fugir. Uns soldados chegaram depois e eliminaram os terroristas, mas não antes deles terem matado 436 pessoas. Homens, mulheres, crianças, idosos, feridos... Não houve distinção, todos foram executados. Foi uma tragédia. Depois que vi aquilo perdi um pouco de sensibilidade, sabe? Não é qualquer coisa que me machuca ou me amedronta hoje em dia. Talvez isso tenha me ajudado a sobreviver nessa droga que o mundo se tornou, mas eu nem de longe me orgulho disso.

Ela baixou a cabeça quando terminou de falar e eu me aproximei para abraçá-la. Eu não percebi, mas ficamos assim, abraçados, até o amanhecer do dia quando fomos acordados por Edinho.

- Hora de ir.

Diário de Um SobreviventeWhere stories live. Discover now