16/12/2018

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Uma forte chuva atingiu a região durante toda a noite e trouxe problemas inesperados. As primeiras gotas começaram a cair ainda antes da meia noite eu imagino e a garoa fina passou a se transformar numa tempestade com o passar das horas.

A chuva foi tão forte ao ponto de deflagrar uma infiltração escondida no telhado e o volume de água foi tanto que fez parte do teto de gesso do quarto em que eu estava desabar durante a madrugada. O barulho foi bem alto e me assustou pra valer.

Estava sonhando com alguma coisa que não me recordo bem e só lembro-me de levantar imediatamente ao ouvir o barulho, sacando a arma que estava embaixo do travesseiro ao meu lado. Instintivamente apontei a arma de um lado para o outro do quarto pronto para atirar no que quer que fosse e demorei um ou dois segundos para perceber do que se tratava.

O quarto estava muito escuro e a pouca visibilidade que tinha era por conta da luz dos relâmpagos que penetravam pela janela. Vi a bagunça que a queda do gesso tinha provocado e dava pra escutar o barulho da água escorrendo pela parede do quarto. Por pouco os escombros que caíram não atingiram a cama e pra não arriscar que a próxima queda me acertasse eu preferir passar o resto da noite em outro quarto.

Peguei o travesseiro, o lençol e minha arma e segui pelo corredor até a porta do outro quarto. Antes de entrar pude ver como o céu estava completamente nublado ao ser iluminado pela queda de mais um raio. Eu não tinha motivos para ter limpado este novo quarto antes e a essa hora da noite também não tinha mais a menor vontade e decidi apenas puxar o lençol da cama e cobri-la com o meu, seria o suficiente pra evitar o contato com algum material contaminado e poder descansar pelo resto da noite que ainda me sobrava.

Acordei pela manhã com Edinho batendo à porta do quarto.

- O que você fez com o outro quarto?

- Eu não fiz nada, foi a chuva.

- Você quer comer?

- Sim.

- Então vem que os outros estão esperando.

- Tá. Já desço.

Edinho deixou o quarto e eu deitei novamente na cama, essa foi uma das camas mais macias que eu dormi nos últimos meses. Bocejei e terminei com um forte suspiro e quando me virei para o lado para alcançar a pistola vi que havia um relógio em cima do criado mudo. Rolei sobre a cama e ao esticar o braço consegui alcançá-lo.

O relógio é bem bonito, com um estilo esportivo, com uma pulseira preta e detalhes em vermelhos e prata no marcador. Marca 9h30m mas eu nem sei se está no horário certo. Às vezes eu penso sobre quem seriam os donos dos objetos que encontro por aí, se eles estão vivos ou o que aconteceu para eles abandonarem suas coisas assim.

Talvez este já tenha sido o relógio preferido de alguém e hoje está no meu braço. Assim como a camisa que visto pode ter sido o presente do dia dos namorados de alguém, ou de seu aniversário e hoje acaba sendo minha. O carro em que chegamos aqui deve ter sido uma grande conquista pra quem quer que o tenha comprado algum dia e hoje é simplesmente mais uma peça descartável para nós. Este motel deve ter sido o empreendimento mais valioso de uma pessoa, a realização de uma vida de trabalho e hoje se transformou apenas num muquifo abandonado onde só passaremos uma noite.

Isso me faz lembrar como tudo pode acabar do dia pra noite. Como algo que significa tudo para alguém pode se transformar em um "nada" num piscar de olhos e eu penso como ou quando isso acontecerá comigo, se é que já não aconteceu.

Depois de muito tempo acabei me deparando com uma verdade que eu ainda não havia percebido, que isso já havia acontecido comigo. Meu diário, que era uma das coisas mais valiosas para mim, hoje não é mais meu.

Ele ficou na minha bolsa que deixei para trás na EcoSport e a essa altura Izabel já o deve ter lido de cabo a rabo. Lembro como fiquei com raiva quando ela escreveu nele depois daquele incidente na cachoeira e é engraçado pensar que hoje ele é simplesmente dela, e que ela pode fazer o que quiser com ele.

Isso é meio assustador na verdade, tem mais de mim naqueles pedaços de papel do que em qualquer outro lugar. Nada e nem ninguém me conhece tão bem quanto àquelas folhas, será que ela ainda o lê?

Com certeza deve ter feito, ler o meu diário é a forma mais real de se aproximar de mim, mais até do que estar perto de mim e especialmente pra ela. Engraçado, talvez ela me conheça mais agora enquanto estamos longe do que quando éramos unha e carne do outro.

- Jotah?! – Era Edinho quem me chamava na porta – Você não vai descer? Queremos comer.

- Já estou indo. – Falei me levantando e o seguindo até o andar de baixo.

Diário de Um SobreviventeWhere stories live. Discover now